Por Laura Mattos, da Folhapress
SÃO PAULO-SP – A lousa pode ser a mais moderna das digitais e o conteúdo estar em uma plataforma esperta que une computadores, tablets e celulares, mas a questão central na educação de hoje não é nova: Como ensinar as crianças e os jovens a pensar?
Até o próximo ano, todas as escolas públicas e particulares do Brasil, de ensino infantil e fundamental, deverão implementar as determinações da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Para o ensino médio o prazo é 2022.
Além de indicar o conteúdo obrigatório das matérias para cada ano escolar, o documento do Conselho Nacional da Educação exige que sejam desenvolvidas nos alunos as chamadas ‘habilidades socioemocionais’. O texto menciona capacidades como “utilizar os conhecimentos (…) para entender e explicar a realidade”, “argumentar com base em fatos”, “exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos” e “agir com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação”.
Temas assim mobilizam um grupo de pesquisa criado há 51 anos na Faculdade de Educação de Harvard, o Project Zero. Mark Church, 48, coautor do livro ‘Making Thinking Visible’ (tornando o pensamento visível) com outros pesquisadores do projeto, dá palestras em escolas de vários países defendendo a ideia de que é preciso criar nos alunos ‘rotinas do pensamento’ (algumas estão no YouTube, em inglês).
O processo de ensinar não pode estar restrito ao professor passar a lição e receber as respostas dos alunos. As aulas devem ser elaboradas a partir de um tripé que estimule a observar, pensar e questionar.
As atividades que criam essas oportunidades são muitas vezes simples e conhecidas dos professores, mas tendem a ocorrer de forma esporádica e sem reflexão sobre seus objetivos. Pode, por exemplo, ser um jogo em que os estudantes olham uma imagem, descrevem o que observaram, dizem o que pensam que está acontecendo naquela cena e o que gostariam de saber sobre aquilo.
Debates em grupo, com troca de impressões e dúvidas, também são ricos. “Temos de nos perguntar se ensinamos as habilidades da matemática, ciências etc. de modo que eles saibam utilizá-las em novas situações. Pensar em como prepará-los para os problemas que ainda não estão aqui”.
Nesse início de 2019, Church esteve em São Paulo para uma terceira conferência na Concept (mensalidade em torno de R$ 6.000), que, como outras novas escolas de elite, vende a proposta de ensino de vanguarda. À reportagem, falou sobre a ideia de ‘ensinar para compreender’ e se disse otimista sobre a possibilidade de isso seja implementado mesmo em uma realidade em que as escolas têm pouca estrutura e os professores, formação deficiente e salários baixos.
PERGUNTA – Como o sr. se envolveu com a ideia de que é preciso ensinar o aluno a compreender?
MARK CHURCH – Depois de lecionar nos EUA, tornei-me
professor em escolas internacionais no Japão, na Alemanha e na Holanda. Foi
quando comecei a trabalhar com o Project Zero. Na década de 1990, o grupo
estava com um grande projeto em torno de questões como ‘o que é compreender?’, ‘como
ensinar os alunos a compreender?’, ‘o que vale a pena aprender?’. Eu estava na
sala de aula, passava as lições e achava que meus alunos estavam aprendendo,
porque entregavam as atividades feitas.
Mas percebi que talvez estivesse ensinando apenas como fazer um procedimento,
como multiplicação com dois dígitos, por exemplo. Praticávamos, eles tinham
habilidade para fazer, eu podia ver o que conseguiam fazer, no que precisavam
de ajuda extra. Frequentemente, porém, acontecia o seguinte: quando as crianças
viravam a página das contas de multiplicação para a seguinte com um conjunto de
problemas matemáticos, me perguntavam: “tenho que multiplicar aqui?” Meus
alunos sabiam fazer, mas não reconheciam quando, como, onde e por que usar
aquelas habilidades em novas situações. E estávamos apenas virando a página. Qual
é o sentido de ter as habilidades se não podemos colocá-las em ação por conta
própria? Comecei então a pesquisar o que é compreender e como isso é
desenvolvido. Além de dar às crianças habilidades em matemática, leitura,
redação e em qualquer área, como fomentar as condições para que possam
trabalhar com elas em novas situações?
P – As escolas mudaram muito nos últimos anos ou continuam semelhantes às de antigamente, com professores, lousas, livros, provas e estudantes sentados?
MC – Não sou um historiador da educação, mas penso que, se em outras áreas há tanta inovação, ideias surgindo e influenciando as profissões, por que deveria ser diferente com as escolas? Meu colega David Perkins, membro fundador do Project Zero, muitas vezes menciona o fato de tantas escolas ensinarem para ninguém, ensinarem coisas que já sabemos. As crianças vão seguir em frente para o desconhecido, para o futuro. Que senso de dever e cidadania temos nessa profissão para não preparar as crianças apenas para o que já conhecido? Como as preparamos para o desconhecido, para os problemas que ainda não estão aqui, para as situações que ainda não encontramos? Temos que ajudar os professores a pensar em movimentos do pensamento nos quais as crianças precisam ser boas para serem conduzidas a uma vida adulta desconhecida. Devemos refletir sobre o que será útil para elas não só agora, mas ao longo dos anos.
P – Você veio a São Paulo para fazer conferências na Concept, uma dessas novas escolas de elite. Mas temos no Brasil uma realidade de escolas públicas e até privadas com pouca estrutura, professores mal remunerados e formação insuficiente. Nesse contexto, é possível aplicar o conceito de se ensinar alunos a compreender?
MC – Não acredito que só escolas como a Concept devam observar que temos de ensinar nossos estudantes a compreender, pensando em que tipo de pensadores esperamos que se tornem quando tiverem a nossa idade. Para lecionar em qualquer contexto, deve-se pensar nos objetivos de longo prazo para nossos alunos e em como os preparamos para um futuro em que vão encarar grandes dilemas, terão grandes questões para tentar solucionar. Tem sido interessante ver como essa ideia tem se espalhado. Já observei isso i quando estive trabalhando em escolas de subúrbio, como em Sydney, na Austrália, e em Glasgow, na Escócia. Nas escolas escocesas de ensino médio, por exemplo, tanto públicas quanto privadas, em áreas pobres da cidade, os estudantes não estavam atingindo o Attainment Challenge [sistema do país que mensura o rendimento dos estudantes e busca equidade na formação]. Estavam lutando com as escolas, com todos esses exames, e não iam bem. Foi interessante ver que quando os professores tentaram tornar o processo de pensamento deles visível criou-se uma nova dinâmica. Os alunos passaram a sentir mais e mais que a escola era um lugar para eles, que suas ideias importavam e que os adultos que comandavam aquelas salas de aulas não estavam lá apenas para controlar o grupo. Estavam, sim, sinceramente interessados em ser alunos dos alunos, em criar espaço para que suas vozes fossem ouvidas. Isso deu força a eles.
Não sou especialista em sistemas de educação, mas sei que essas ideias estão encontrando espaço dentre professores que trabalham em circunstâncias muito adversas e eu acho isso promissor.
P – Você defende que se crie espaço para que os estudantes desacelerem e possam pensar, evitando a pressão de prazos e agendas lotadas. Não é o oposto do que se dá hoje especialmente com crianças da elite, que, além das matérias da escola, têm os mais diversos cursos extras, de futebol e natação a carpintaria e skate?
MC – Nosso projeto não fala disso, mas certamente é algo com que nos preocupamos. Tem um filme maravilhoso, “Race to Nowhere”, que questiona se não estamos sobrecarregando as crianças com tanta coisa sem prestar a atenção a elas como seres humanos, pensadores. O trabalho de ensinar para compreender e de criar a cultura de rotinas do pensamento não minimiza que existem deveres e prazos. Queremos que as crianças pensem profundamente sobre matemática, ciências, história e todas as matérias, mas é central avaliar em que hábitos de pensamento queremos que sejam boas para que possam se agarrar às grandes ideias em cada área e levá-las para a vida adulta.
P – As redes sociais são aliadas ou inimigas do processo de ensinar para compreender?
MC – Estamos presos a bolhas falando com quem concorda com as ideias que temos e, como sociedade, temos de nos perguntar como queremos conversar uns com os outros, ter diálogos, debater, pensar sobre que vozes estão sendo ouvidas. Quando os estudantes estão bem preparados para observar de perto, fazer conexões, considerar outros pontos de vista, raciocinar com evidências, construir explicações, enfim, quando têm esses hábitos de pensamento, estão mais bem preparados para ter conversas mais profundas com quem compartilha da mesma opinião. Mas também podem transpor para conversas difíceis com pessoas das quais discordam a rotina de buscar perspectivas, complexidade e empatia, realmente escutando o outro.
P. – Você fala de ‘pais helicópteros’, sempre em cima dos filhos, prontos para salvá-los em qualquer situação, e ‘professores helicópteros’, que, em vez de ajudar os alunos a buscar soluções, agem como se tivessem de consertar seus erros. Como evitar esse comportamento e deixar que as crianças desenvolvam autonomia?
MC – Não fui eu que criei esse termo, ele está aí, mas o que entendo desse fenômeno é que não damos às nossas crianças a chance de falhar. Se estamos sempre os carregando, que oportunidades podemos estar menosprezando? Por que evitamos ensinar resiliência em vez de olhar para as oportunidades de desenvolvê-la?
Muitas vezes na escola, com boa intenção, nós, professores, assim que vemos os alunos fazendo um grande esforço para entender algo, queremos pular para salvá-los. Deve-se criar uma cultura para que se sintam seguros de arriscar, tentar. E, se algo não der certo, não há um demérito enorme ou prejuízo para o aprendizado. Quero colocar o aprendizado na mão deles e deixá-los se esforçar para que as coisas façam sentido. Mesmo que tenham equívocos, devemos deixá-los trabalhar a partir do erro, sem tentar salvá-los. Devem batalhar com suas próprias ideias, se sentir seguros para isso, e temos de agir como facilitadores. Sei que esse esforço pode se transformar em sofrimento para os alunos e obviamente não quero isso. Por isso, temos de sempre nos perguntar quando dar um passo à frente, um passo para trás, quando intervir, quando deixar nas mãos deles, desenvolvendo a autonomia e respeitando o tempo de cada um. É bem diferente de não prestar atenção às crianças, de só passar lição e esperar que obedeçam. É uma habilidade complexa, temos de ser alunos dos nossos alunos.
P – Pesquisar ferramentas e tendências da educação em diferentes países e ter contato com crianças, adolescentes, pais, professores e com a relação se constrói entre todos fazem de você otimista ou pessimista em relação ao futuro?
MC – (Risos) Otimista, sem dúvida. Leio jornais, sei que há muito sobre o que ser pessimista. Mas vou a muitas escolas onde os professores estão de fato tentando o melhor para ter uma influência consciente sobre as crianças. O desafio é enorme, escolas são complexas e têm uma série de dificuldades, tanto públicas quanto privadas, mas vejo professores tentando realmente prestar a atenção às crianças. Não estão só ensinando matemática, ciências, o conteúdo curricular. Ver professores, mesmo com tantas dificuldades, fazendo o melhor para levar em conta quem são os seres humanos à sua frente e pensando sobre o querem para eles agora e no futuro, me traz muito otimismo.