Por Renata Galf, da Folhapress
SÃO PAULO – Especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes na opinião de que a LSN (Lei de Segurança Nacional) não é compatível com o regime democrático e na de que é positivo o Legislativo tratar do tema. Parte deles, porém, considera que o novo texto pode trazer riscos e que é preciso um debate aberto à sociedade.
As entrevistas foram realizadas com base em um rascunho do texto substitutivo – a proposta que pode levar o nome de Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito deve sofrer mudanças antes de sua votação em plenário.
Os pontos criticados variam, mas, apesar da necessidade de alterações, parte dos entrevistados aponta que a relatora encontrou boas soluções. Flávia Pellegrino, coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia (iniciativa que reúne mais de 150 organizações da sociedade civil), diz que o esforço para criar a nova lei é bem-vindo, mas ela se diz crítica ao modo acelerado em que o debate está colocado.
Por que a LSN é alvo de críticas?
Aprovada em 1983, a lei é vista por muitos como um entulho autoritário. Um dos argumentos é o de que ela foi feita baseada na lógica de um inimigo interno, destinada a silenciar críticos. Assim, ela feriria preceitos fundamentais da Constituição de 1988, como do pluralismo político e da liberdade de expressão.
Um dos pontos mais criticados não consta no novo projeto. Trata-se do artigo que determina pena de até quatro anos de prisão para quem caluniar ou imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.
Hoje a LSN tem sido usada tanto contra críticos do governo de Jair Bolsonaro quanto em investigações que miram bolsonaristas em ataques ao STF e ao Congresso.
Presidente do Ibccrim, Marina Coelho Araújo aponta que é preciso fazer um equilíbrio entre a proteção das instituições democráticas e a liberdade do cidadão. “Qualquer crime que venha a ser instituído não pode proibir direitos constitucionais, como o de reunião e o de criticar instituições.”
O que estabelece o projeto?
Pela proposta, os crimes políticos deixariam de constar em uma lei específica, como é o caso da LSN, e passariam a compor o Código Penal, sob o título de crimes contra o Estado democrático de Direito.
A versão mais recente do substitutivo dividiu o tema em seis capítulos: crimes contra a soberania nacional; contra as instituições democráticas; contra o funcionamento dessas instituições nas eleições; contra o funcionamento dos serviços essenciais; contra autoridades estrangeiras; e contra a cidadania.
Crimes contra instituições democráticas
Estão previstos neste capítulo os crimes de insurreição, golpe de Estado, conspiração, atentado à autoridade e incitamento a guerra civil. Dentre eles, a redação do artigo que trata da insurreição foi bastante criticada. Tal artigo prevê pena de prisão de quatro a oito anos para aquele que “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, impedir ou dificultar o exercício do poder legitimamente constituído, ou alterar o regime democrático ou o Estado de Direito, de modo a produzir instabilidade no funcionamento dos poderes do Estado”.
O item prevê ainda aumento de pena e perda de cargo caso o crime seja praticado por agente público (ou militar). Também prevê aumento de pena “se o agente reforça o emprego da violência ou da ameaça mediante incitação ou propagação de notícias falsas através de comunicação pública”.
Há ainda uma exceção: “Não constitui crime a manifestação pública de crítica aos Poderes constituídos, nem a reivindicação não violenta de direitos por meio de passeatas, reuniões, aglomerações ou qualquer outro meio de comunicação ao público”.
Uma das críticas do professor Diego Nunes, de Teoria e História do Direito da UFSC, deve-se ao uso do termo “poder legitimamente constituído” em vez de poderes constitucionais. Ele considera ainda que a expressão “produzir instabilidade” no funcionamento dos Poderes é muito ampla.
Já Marina Coelho vê no uso da expressão “produzir instabilidade” uma maneira adequada de restringir a aplicação do artigo. “Não é qualquer impedimento ou dificuldade de exercício de Poder que vai ser trazida como insurreição”.
O advogado Marco Antonio da Costa Sabino, membro do Instituto Liberdade Digital, considera que há risco no uso do termo “grave ameaça”. “Suponha, como acontece, que as pessoas num ato pareçam ameaçadoras e que eventualmente protestem contra um cinturão da polícia que não as deixa caminhar. Se enfrentarem a polícia, elas vão incidir nesse crime?”
Além disso, para ele, a escolha do termo “reivindicação não violenta de direitos” – para excluir a prática de crime – não é suficientemente protetiva do direito ao protesto.
Crimes contra a soberania nacional
O capítulo inclui os crimes de atentado à soberania, traição, espionagem e atentado à integridade nacional. Eles buscam proteger o país em relação a atores externos e ações que visem, por exemplo, separar parte do território nacional.
Para Nunes, o fato de não prever tais crimes era uma lacuna do projeto de lei 3.864/2020, de Paulo Teixeira (PT-SP) e João Daniel (PT-SE). Por outro lado, o advogado Gabriel Sampaio, coordenador da Conectas Direitos Humanos, considera que parte dos artigos deste capítulo tem uma redação muito aberta, dando margem a abusos.
Ele aponta a necessidade de incluir uma salvaguarda no crime de espionagem para pessoas que, por exemplo, vazam documentos para denunciar violações do Estado.
Já no crime de integridade nacional sobre “tentar submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país”, Sampaio considera que as alternativas de ocorrência desse crime deveriam ser mais restritas e bem definidas.
As alternativas previstas no rascunho para ocorrência de crime são empreender “ação para ofender a integridade ou a independência nacional” ou executar “ordem ou determinação de governo estrangeiro que ofenda ou exponha a perigo a soberania do país”.
Para Sampaio, uma possibilidade seria restringir a aplicação a quem participar concretamente de algum tipo de ação bélica contra a soberania. “Fora disso, podemos ficar num campo muito aberto e indeterminado”.
Crimes contra as instituições democráticas nas eleições
As críticas foram tanto relacionadas ao conteúdo dos artigos quanto à inclusão dos crimes no Código Penal, e não no Código Eleitoral. A princípio, estão previstos três crimes neste capítulo: interrupção do processo eleitoral, comunicação enganosa em massa e violência política. O mais questionado foi o de disparos em massa, segundo o qual é crime “promover, constituir, financiar, ou integrar […] ação coordenada para disparo em massa de mensagens que veiculem conteúdo passível de sanção criminal ou fatos sabidamente inverídicos capazes de colocar em risco a vida, a integridade física e mental, a segurança das pessoas, e a higidez do processo eleitoral”.
Ricardo Campos, do Instituto LGPD, considera que a medida não seria efetiva. “Pode até punir uma empresa amadora de Poços de Caldas, mas não chegará ao profissionalismo de empresa sediada em outro país, que apresenta de fato potencial ameaça institucional”.
Além disso, ele aponta que, na ausência de uma regulação sobre o tema, é perigoso criminalizar condutas.
Crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais
Neste item, estão os crimes de apoderamento ilícito de meios de transporte, sabotagem e de ação de grupos armados. “Vários artigos apontam ‘motivação política’, quando deveriam claramente falar em perigo concreto ao funcionamento das instituições constitucionais e à existência do Estado democrático de Direito”, diz Diego Nunes, da UFSC.
O crime de sabotagem, por exemplo, prevê pena de dois a oito anos para quem, com fins políticos ou religiosos, destruir, inutilizar “meios de comunicação ao público ou de transporte, instalações públicas ou estabelecimentos destinados ao fornecimento de energia, à defesa nacional ou a? satisfação de necessidades gerais e impreteríveis”.
Gabriel Sampaio cita indígenas que eventualmente usem a tomada de controle de serviço essencial como estratégia de protesto em casos de obras que afetem seus territórios. “A sociedade pode até discutir que isso tenha relevância penal, mas há de concordar que esse tipo de conduta não visa destituir a ordem constitucional ou ferir o Estado democrático de Direito”.