O terceiro capítulo do Caderno Encantar a Política nos introduz em um assunto fundamental para compreendermos a relação entre fé e política. Para o desconforto de alguns grupos eclesiais de tendência conservadora e pietista, esse capítulo mostra que a fé porta uma dimensão essencial que lança o cristão ao desafio de construir uma sociedade justa, fraterna e sustentável.
Recorrendo à Exortação Apostólica do Papa Francisco, Evangelli Gaudium, o texto explicita a dimensão social da evangelização, que aponta para a construção de uma vida social como um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. É disso que se trata: fazer da vida em sociedade não um espaço de competição de cada um contra todos, como propõe a ordem do mundo capitalista, mas um espaço de fraternidade geral, fornecendo à fé uma expressão visível para todos.
Construir a paz não significa fomentar um mundo que dá segurança de que os negócios vão prosperar, o mercado não sofrerá concorrência desleal e todas as pessoas que violarem o direito de propriedade serão vigiadas e punidas. Para essa forma de paz pela força das armas, pouco importa se há ou não justiça nas relações entre capital e trabalho, entre homem e mulher e entre países ricos e empobrecidos.
Na verdade, trata-se de uma paz enraizada na ética, que é reflexo de uma “sociedade de iguais”, onde cada pessoa é respeitada nas suas diferenças, sejam elas raciais, religiosas, étnicas e de gênero.
Para chegarmos a essa paz, no entanto, é necessário desvendar as causas estruturais da pobreza. Desvendar tais causas significa também tomar consciência das diversas formas de violências que afetam pessoas, grupos e populações, relegando-os à exclusão e ao descarte. Nesta tomada de consciência importa verificar quem são os principais responsáveis pelos processos de empobrecimento e injustiças, assim como identificar como tais iniquidades perduram ao longo do tempo. Somente assim é possível desconstruir esses processos corrosivos e forjar outras dinâmicas pautadas pela solidariedade e sustentabilidade.
Segundo o Caderno Encantar a Política, vivemos em uma sociedade dominada pelo dinheiro, cujos efeitos são destrutivos e impedem a instituição da paz e da justiça. Na Amazônia é fácil encontrar os resultados dessa lógica perversa: desmatamento e queima de florestas, garimpo ilegal, poluição e destruição dos rios, invasão de terras indígenas, pobreza, intolerâncias, perseguição e assassinatos de lideranças comunitárias e ambientais. Essas atrocidades não são acontecimentos isolados, mas consequências naturais de políticas e estruturas bem consolidadas.
Um cristão ou uma cristã que vive a sua fé de forma autêntica não passa à margem dessas situações, mas procura intervir socialmente para erradicar tais mazelas, plantando as bases de outro modelo civilizacional. O amor cristão, que leva as pessoas se solidarizarem e fortalecerem os laços de pertença social se realiza na ação política em favor da vida, vida em abundância, vida para todos e todas.
Uma sociedade que estimula a competitividade e supervaloriza o lucro não apresenta um cenário favorável à prática da solidariedade como estilo de vida. Ao contrário este ideal é rejeitado e muitos que o assumem são perseguidos e assassinados.
No entanto, a construção de uma sociedade justa e sustentável é expressão do desejo humano de autossuperação que é mobilizado pela fé, dispondo o homem e a mulher ao encontro com o outro radicalmente diferente.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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