Da Folhapress
MANAUS – Invadidos pelo garimpo ilegal e atraídos pela cidade em busca do auxílio emergencial e de outros benefícios sociais, os mundurucus, povo indígena da bacia do rio Tapajós, no sudoeste do Pará, perderam duas lideranças para a Covid-19 em um espaço de poucas horas.
Na madrugada da terça-feira, 2, morreu Amâncio Ikon Munduruku, 59. Morador da Terra Indígena Praia do Mangue, localizada dentro do perímetro urbano de Itaituba, ele havia sido transferido para Belém, a 890 km em linha reta.
Um pouco antes, às 21h de segunda, morria o cacique Vicente Saw, 71. Era líder da aldeia Sai Cinza, na Terra Indígena Munduruku, perto da cidade de Jacareacanga (1.160 km de Belém em linha reta), região conhecida como Alto Tapajós.
Segundo organizações mundurucus, outros quatro idosos foram vítimas da Covid-19, dos quais três moravam no Alto Rio Tapajós, abundante em ouro e com fluxo intenso de garimpeiros. Há mais seis que estão internados, dos quais cinco em Jacareacanga.
“[A epidemia] está sendo uma das formas de destruição de nosso povo, a morte dos nossos sábios, nossos velhos, nossos conhecedores”, afirmou o Movimento Munduruku Ipereg Agu, em nota de pesar.
Com cerca de 14 mil pessoas, os mundurucus são um dos povos indígenas de maior população do país. Há comunidades também em Mato Grosso e no Amazonas, onde um idoso mundurucu morreu em decorrência do vírus.
O novo coronavírus já chegou a 78 dos 252 povos indígenas, segundo a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). De acordo com monitoramento diário, os óbitos cresceram 550% em maio e somam 182 -30 no Pará.
Filas de banco e garimpo Assim como nas demais terras indígenas, centenas de famílias mundurucus estão inscritas em programas sociais do governo federal. Com o auxílio emergencial, repetiram-se em Jacareacanga as filas diante de agências bancárias e da lotérica registradas em outras cidades do país.
Lideranças mundurucus também apontam a presença do garimpo como um fator adicional. Em 20 de maio, dezenas de garimpeiros indígenas e não indígenas fizeram um manifestação na cidade defendendo a atividade.
Em uma das faixas, lia-se “Não aceitamos a Operação Verde Brasil em Terra Munduruku”, em referência às ações do Exército contra crimes ambientais na Amazônia.
“Estou revoltado que, em plena pandemia, os garimpeiros não indígenas incentivam os indígenas a fazer manifestação em favor do garimpo, sem respeitar o distanciamento social”, afirmou a liderança Valdenir Munduruku. “Com certeza, a gente tem de esperar por dias muito ruins para as comunidades, principalmente a próximas [de Jacareacanga].”
Para a liderança Alessandra Korap, outro agravante é a falta de infraestrutura médica para combater a Covid-19. A UTI mais próxima está em Santarém, mas, por causa da falta de leitos, a opção mais viável tem sido a distante Belém, via área.
“Não tem teste. A gente adoece, melhora, passa para os outros, mas não sabe se está infectado”, diz Korap, que mora na TI Praia do Índio, na região de Itaituba. “Estamos abandonados pelo poder público.”
Sobre Amâncio Munduruku, a quem considerava seu tio, Korap afirmou: “Ele sempre me acalmava quando estava bem zangada. Ele falava para ter paciência, para pensar como o jabuti: ter estratégia e calma para conseguir vencer.”
Na semana passada, o Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) Rio Tapajós, do Ministério da Saúde, recebe doação de produtos de higiene básica e de saúde da ONG Greenpeace, dentro do projeto Asas da Emergência.
Segundo boletim do Dsei, que, seguindo a legislação vigente, realiza atenção básica apenas a indígenas aldeados, houve confirmação de Covid-19 em 5 dos seus 11 polos. O órgão conta 19 casos confirmados e 3 óbitos.
A Associação Indígena Pariri – Munduruku do Médio Tapajós divulgou nota cobrando maior atenção aos povos indígenas
ESTAMOS EM LUTO, MAS SEGUIREMOS NA LUTA!
“A nossa história de organização começa assim… Um vereador fez um pronunciamento e falou que aqui na região não tinha índios. Nesse momento a gente despertou e começou a pensar no que ele disse, que não tinha índios aqui. Realmente não tinha organizado, representado juridicamente. (…)Isso fez com que a gente se organizasse e corresse atrás dos nossos direitos” (Amâncio Ikon, P. do Mangue, 2013)
Nós, Munduruku do médio Tapajós, estamos em uma luta muito grande contra esse inimigo invisível.
Hoje pela manhã recebemos com muita tristeza a notícia de que nossa grande liderança Amâncio Ikon Munduruku, aos seus 59 anos, partiu para outro mundo, menos de 24 horas depois de sabermos que cacique Vicente Saw, 71 anos, também havia falecido de COVID-19. Outros três anciões que, da mesma forma que Vicente e Amâncio, carregam os conhecimentos do nosso povo, que são nossa biblioteca, também faleceram nos últimos dias por causa dessa doença – Jerônimo Manhuary (86 anos), Angélico Yori (76 anos) e Raimundo Dace (70 anos). Outros seis Munduruku estão internados em estado grave em Jacareacanga e Itaituba.
Junto dos familiares de Amâncio Ikon, sofremos por sua partida inesperada desse mundo. Nosso choro também vem trazer a memória de uma vida de muita luta, sempre com serenidade e alegria. Também uma vida de dedicação e ensinamentos a seus filhos, familiares, parentes e amigos.
Amâncio Ikon era uma liderança muito respeitada e reconhecida pelo povo Munduruku e por todos que o conheceram ou dele ouviram falar local, regional e nacionalmente. Nasceu na aldeia Ūrūbuda, abaixo de Kaburua, cabeceira da nascente Waodadi e do rio Cabitutu, no alto Tapajós. Veio muito novo com seus pais, irmãos e familiares para o médio Tapajós, onde abriram a aldeia Praia do Mangue.
Amâncio foi um dos fundadores da Associação Indígena Pariri, em 08 de novembro de 1998. Até 2005, esteve na coordenação da entidade e atualmente era vice-coordenador, somando mais de vinte anos de luta. À frente da Associação, realizou inúmeros projetos e conseguiu implementar a educação bilíngue nas aldeias do médio Tapajós. Sempre se preocupou com o fortalecimento e a valorização da língua e da cultura Munduruku nas aldeias do médio Tapajós. Junto a associações do alto Tapajós, atuou com muita intensidade na defesa dos direitos territoriais do povo Munduruku e dos direitos indígenas em geral. Participou ativamente do Ibaorebu, projeto de educação diferenciada, e se formou em Agroecologia em 2015.
Seus conhecimentos sobre a história e o pensamento do nosso povo fizeram dele um grande professor para todos nós. Seus saberes foram e são fundamentais para os processos de demarcação de nossas terras e para despertar nos jovens o orgulho de ser Munduruku.
Por cinco dias esteve em sua casa com falta de ar e febre até ser levado para uma Unidade de Pronto Atendimento em Itaituba, onde testou positivo para COVID-19. Com muito esforço dos nossos parceiros e principalmente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, conseguimos que fosse transferido para um hospital em Belém, pois a cidade de Itaituba não tem uma estrutura de UTI minimamente capaz de atender os casos graves. O descaso do Governo com a saúde pública e a precariedade de atendimento na saúde indígena não são por acaso. Todos os que sempre se omitiram e ignoraram nossas reivindicações pela saúde e os que agora se omitem diante dessa situação emergencial e descontrolada são responsáveis.
Amâncio partiu para junto dos nossos ancestrais e, como um grande guerreiro, herdeiro de Karodaybi, vai continuar nossa luta desse outro lugar. Seu exemplo e sua força estão com todos os Munduruku. Seguiremos firmes na luta que ele e nossos antigos travaram. Não ficaremos calados e nem deixaremos que o Governo nos mate. De geração em geração, nós guerreiros e guerreiras Munduruku, defenderemos nosso povo e nosso território até o fim.
Itaituba, 02 de junho de 2020
Associação Indígena Pariri – Munduruku do Médio Tapajós