Por Patrícia Campos Mello, da Folhapress
SÃO PAULO – Quando fazia apresentações para potenciais clientes, o ex-presidente da Cambridge Analytica Alexander Nix costumava mostrar a imagem de uma praia com duas placas diferentes. Do lado esquerdo, ficava uma branca e quadrada, na qual estava escrito ‘praia particular’; do lado direito, uma amarela, de alerta, que dizia ‘cuidado: tubarão’. Qual placa era mais eficaz?
“Qualquer um sabe que a segunda afastaria as pessoas”, dizia Nix, conforme narra Brittany Kaiser no livro ‘Manipulados: Como a Cambridge Analytica e o Facebook Invadiram a Privacidade de Milhões e Botaram a Democracia em Xeque’, recém-lançado no Brasil.
Brittany era diretora de desenvolvimento de negócios na empresa, e a Cambridge Analytica era uma “agência de mudança de comportamento”, como Nix gostava de dizer.
Na realidade, a companhia usava dados de milhões de pessoas para alimentar os medos desses usuários de redes sociais e levá-los a votar em determinados candidatos, como Donald Trump, ou a favor de temas como a saída do Reino Unido da União Europeia. Após trabalhar três anos na Cambridge Analytica, Brittany se tornou uma delatora.
A empresa protagonizou o maior escândalo da história das redes sociais. Em 2018, foi revelado que a companhia obtinha dados de milhões de pessoas por meio de aplicativos no Facebook – testes de personalidade, por exemplo – que sugavam, sem autorização, informações de usuários e de seus contatos.
Ao fazerem os testes, os usuários concordavam em dar acesso a seus dados, uma vez que a maioria não lia os pormenores das regras de uso. Os contatos desses usuários, no entanto, não tinham consentido coisa nenhuma.
E o que eles fizeram com esse mar de dados? A empresa segmentava milhões de pessoas em grupos segundo as classificações “abertas a novas experiências”, “extrovertidas”, “metódicas”, “empáticas” ou “neuróticas”.
Com essas e inúmeras outras informações, criavam campanhas políticas que explorassem as ansiedades de nichos da população. Por meio dos chamados “dark ads” (anúncios sombrios), apenas alguns grupos viam certas mensagens em suas linhas do tempo no Facebook. Assim, pessoas contrárias a imigração veriam anúncios racistas, enquanto ativistas pela mudança climática se deparariam com mensagens de viés ambientalista, por exemplo. Era o ‘microtargeting’.
A empresa também usou outros métodos. No Quênia, criou um partido para o candidato Uhuru Kenyatta. Na Nigéria, espalhou vídeos violentos para intimidar eleitores.
Um aspecto importante do livro é que Brittany joga luz sobre o verdadeiro papel da Cambridge Analytica em campanhas que levaram a rupturas importantes – a ascensão de Donald Trump e o brexit.
Embora Brad Parscale, estrategista das campanhas de Trump, negue que tenha usado esses serviços de forma significativa e muitos apontem que o gasto com a consultoria foi pequeno, o livro mostra que o trabalho de “microtargeting” foi, sim, importante.
Muitos dos serviços da empresa para a campanha do hoje presidente, segundo Brittany conta, não eram cobrados. Ela também mostra que a companhia colaborou com o grupo Leave.EU na campanha do brexit, apesar das seguidas negativas de Nix.
Não está claro quão eficientes eram os métodos da Cambridge. Hoje, muitos pesquisadores afirmam que os resultados incríveis alardeados pelo ex-presidente da agência eram mais marketing do que realidade. Como disse um colega de Nix, ele conseguia “vender uma âncora a um afogado”.
A transformação de Brittany também é interessante. Em 2008, ela trancou a faculdade e foi trabalhar como voluntária na campanha de Barack Obama. Sempre foi muito alinhada a causas de esquerda e chegou a trabalhar com direitos humanos na África do Sul e na Líbia pós-Gadaffi. De repente, viu-se ajudando a eleger Trump, trabalhando com Steve Bannon e usando um boné do lobby pró-armas.
Brittany não cai na armadilha de dizer que foi enganada por Nix, embora afirme não ter conhecimento prévio de grande parte das falcatruas. Admite, porém, que a ambição de ascender e ganhar dinheiro para ajudar os pais em dificuldades se sobrepuseram.
O livro pode ser um bom complemento ao documentário ‘Privacidade Hackeada’ (na Netflix), conduzido a partir do ponto de vista de Brittany. É importante não creditar poderes extraordinários à Cambridge, mas também não se pode subestimar a capacidade das técnicas para acirrar a polarização e inflamar a militância.
Brittany descreve, por exemplo, como a empresa idealizou um vídeo para a campanha de Trump com imagens de um discurso de 1996 no qual Hillay Clinton definia jovens negros criminosos como ‘superpredadores’. Hillary havia dado a declaração 20 anos antes e já havia se desculpado. Mas a disseminação do registro certamente lhe custou muitos votos entre eleitores afro-americanos.
A peça fez parte de uma tentativa bem-sucedida de supressão de votos – a o voto nos EUA não é obrigatório –, e convencer as pessoas a não saírem de casa para votar no oponente é tão eficaz quanto fazer com que os eleitores de um candidato votem nele.
Após os sucessivos escândalos, a Cambridge Analytica fechou em maio de 2018. Mas seus métodos fizeram escola. Ainda que não seja mais possível usar aplicativos no Facebook para coletar dados de terceiros e haja recursos para revelar quem paga pelos anúncios políticos na plataforma, ainda há inúmeros recursos disponíveis para segmentar mensagens e jogar com o medo das pessoas.
E tudo isso fica cada vez mais sofisticado. Preparem-se para a próxima Cambridge Analytica, que, no mínimo, tentará manipular opiniões em vídeos de realidade virtual, usando os chamados ‘deep fakes’.