Por Eduardo Moura, da Folhapress
SÃO PAULO-SP – “Onde queres comício, flipper-vídeo”!. Naquele ano de 1984, quando Caetano Veloso lançava “O Quereres”, política e videogame pareciam ocupar espaços opostos. “Flíper era como se chamava pinball, fliperama. Eu via pessoas jogando em frente à TV. Isso contrastava com interesse em comícios, falas políticas em espaço público”, explica Caetano.
Trinta
e cinco anos depois, o cenário mudou. Neste momento em que o termo guerra
cultural bate e quica nos discursos tanto de esquerdistas quanto de
direitistas, o governo se digladia abertamente com setores como os de cinema e
teatro. Mas há um tipo de produto cultural específico que, em vez
pedradas, ganha afagos: os jogos eletrônicos. “Um forte abraço gamers!”, postou
Jair Bolsonaro, sem se preocupar com a vírgula.
Em falas recentes, o presidente tem feito acenos para a indústria de
videogames.
Na última quinta-feira, 15, publicou decreto que reduz alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), “incidentes sobre jogos de vídeo e suas partes e acessórios”. Bolsonaro também mencionou, em postagem nas redes sociais, taxas de importação para eletrônicos.
No Twitter, como que para justificar a preocupação com os games, o presidente disse que “o Brasil é o segundo mercado no mundo nesse setor”. Sim, o mercado consumidor brasileiro é grande. Mas, não, não é o segundo. De acordo com a Newzoo, empresa de análise especializada no setor, o país é na verdade o 13°, com 75,7 milhões de jogadores, que gastaram ao todo US$ 1,5 bilhão em 2018.
“O setor de games surgiu como software e, no imaginário, ele ainda está muito próximo do setor de software. Enquanto nas ‘culturas clássicas’ a parte de negócios é uma consequência, o setor de games já nasceu voltado para o mercado. Quase não existe (o debate) ‘mercado versus cultura’”, diz o pesquisador Pedro Zambon, que mapeou o ecossistema brasileiro de jogos digitais.
“O governo encara o produto [game] como bem de entretenimento, diferente de cultura. Isso não é exatamente bom”, diz Luiggi Reffatti, programador e designer da Fira Soft, empresa brasiliense de games. O decreto em favor dos consoles vem seis anos depois da frase “é um crime o videogame, tá ok? Você tem que coibir o máximo possível”, dita em 2013 por um Jair Bolsonaro ainda distante da faixa presidencial, no programa Mulheres, da TV Gazeta.
Em 2019, já presidente, Bolsonaro ligou pessoalmente para o jogador profissional de Counter-Strike Gabriel Toledo, conhecido como FalleN. A pauta da conversa era redução de impostos sobre games.
Para o jornalista João Varella, autor do livro ainda inédito ‘Videogame – A Evolução da Arte’ (Ed. Lote 42), essa inflexão está ligada ao imaginário criado pelos jogos AAA (ou ‘triple A’), como são conhecidos os games blockbuster –para usar outro estrangeirismo, são os mais mainstream e nos quais, segundo Varella, a “competitividade exacerbada” impera.
“Esses jogos costumam tocar em questões que são parte dessa cultura branca, heterossexual e conservadora. Uma das franquias de maior sucesso desse mercadão é ‘Call of Duty’, que tem uma clara pauta de exaltação militar”, afirma o jornalista.
Se o conceito de guerra cultural tem como epicentro temas como raça, sexualidade e comportamento, então essa idealização dos games é terreno menos hostil para a direita. “Nos games de maior expressão, existe uma cultura de violência para resolução de problemas que encaixa com uma ideia bolsonarística. E aí clica uma coisa com a outra”, diz Varella.
Porém, esse universo é mais complexo do que o senso comum faz parecer. As mulheres são a maioria dos jogadores casuais: 58,8%, de acordo com pesquisa Game Brasil de 2019. Nesse grupo, joga-se até três vezes por semana, em sessões de até três horas, e a plataforma principal são os smartphones.
Entretanto, são os consoles e computadores que atraem a preferência dos jogadores ‘harcore’, que representam 30% do total mapeados, uma minoria ruidosa, composta majoritariamente por homens (58,9%). Sob o ponto de vista das produções, começam a ganhar expressão jogos que vão na contramão da hegemonia temática dos AAA.
Longe dos protagonistas machões de franquias como ‘God of War’ ou ‘Red Dead Redemption’, o game independente brasileiro ‘Dandara’, listado como um dos melhores de 2018 pela revista Time, tem como personagem principal uma mulher negra inspirada na esposa de Zumbi dos Palmares. Já o australiano ‘Florence’, eleito o melhor jogo para celular pelo Game Awards (espécie de Oscar do setor), define-se como ‘uma história de amor interativa’.
Mesmo dentro do âmbito dos AAA, ecos feministas se fazem presente. A protagonista da franquia ‘Tomb Raider’, Lara Croft, tem uma representação menos sexualizada na versão de 2018, se comparada com sua versão peituda de 1996.
A violência como solução de problemas, o machismo e a competitividade não são exclusividade dos videogames e têm forte presença nas alas mais comerciais de outras linguagens artísticas –de Hollywood a best-sellers juvenis. A diferença é que, como os jogos eletrônicos já nasceram mais voltados ao mercado, a supremacia dos AAA foi mais natural. “Estamos em um momento de ver o videogame como expressão artística. Não dá para ficar só no ‘Call of Duty’ e achar que é tudo tiro, porrada e bomba”, diz Varella.
Os jogos ainda não se sagraram no Olimpo das artes. Caso chegue esse momento, resta saber se os afagos do conservadorismo permanecerão.