Ditadura militar, povos indígenas e igreja católica na Amazônia, é o título do livro do historiador Jaci Guilherme Vieira. Publicado pela Editora Valer, o livro foi lançado recentemente no Centro de Ciências Humanas (CCH) da Universidade Federal de Roraima (UFRR). O auditório lotado para o lançamento foi um indicativo da importância da obra para a formação do conhecimento histórico, social, político, econômico e cultural da Amazônia.
O livro problematiza o histórico “mito da convivência pacífica” entre índios e brancos no Brasil. A insistência neste mito, por parte da elite branca, eurocêntrica e etnocêntrica está baseada na relação colonial de dominação dos índios desde 1500. A colonização, longe de ser uma convivência pacífica, impôs uma relação de controle hostil aos povos indígenas subjugados e condicionados ao trabalho escravo.
Para a Elite fundiária do Estado de Roraima, a convivência pacífica era aquela que aprisionava os povos indígenas às fazendas de gado leiteiro. Confinados ao trabalho escravo, maltrapilhos, humilhados e subjugados. Enquanto permaneceram calados foram considerados “pacíficos”. Esta realidade foi observada, constatada e denunciada ao mundo há mais de 100 anos, pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg que estudou as fronteiras do Brasil, Venezuela e República Cooperativista da Guyana. Grünberg fez quatro longas viagens de estudos ao Brasil, entre 1896 e 1924, e se notabilizou pelos trabalhos escritos sobre os índios dos rios Negro e Branco, pelas coleções etnográficas e pelos registros sonoros, fotográficos e cinematográficos realizados em suas expedições. Em sua obra ‘Do Roraima ao Orinoco – Vol. I: Observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913’. Grünberg identificou os “índios confinados nas fazendas de Roraima” e os denominou como os “infelizes” descrevendo-os em sua humilhação e aniquilação humana.
O livro do professor Jaci aborda também o trabalho dos missionários e missionárias do Instituto Missões Consolata com os Povos Indígenas de Roraima no período de 1969 a 1999. A pesquisa é resultado de seu pós-doutorado realizado na Universidade Federal do Pará (UFPA). De acordo com o autor, o objetivo do livro é “mostrar como foi à resistência dos povos indígenas nessa região”. Nessa perspectiva, apresenta os diversos processos de dominação pelos quais passaram os povos indígenas e as formas de resistência e libertação que foram organizadas a partir de um grande centro de debates e planejamento estratégico localizado na Missão do Rio Surumu, ao nordeste de Roraima.
Trata-se de uma importante contribuição para a história regional ainda pouco aprofundada. De acordo com o autor, a ditadura militar na Amazônia, traçou uma série de políticas econômicas para a região sem levar em consideração as populações indígenas que sofreram com os impactos dos mais variados projetos econômicos instalados na região de forma arbitrária sem levar em consideração os territórios indígenas. Nas décadas de 1960 e 1980 a região do ex-Território Federal de Roraima foi “agraciada” com os projetos de integração nacional com desastrosos impactos sobre os povos Waimiri Atroary, Macuxi, Yanomami, Taurepang entre outras etnias.
Fundamentado em documentos e periódicos locais o autor apresenta o alto grau de violência desencadeado sobre as populações indígenas, antes, durante e depois da ditadura, como também o envolvimento dos membros da Igreja Católica de Roraima com os povos indígenas na luta pela demarcação das Terras Indígenas, entre elas a Raposa Serra do Sol.
O autor destaca que a partir do golpe de Estado de 1964, um novo projeto fundiário conservador que atendesse as oligarquias e o grande capital, voltado a diminuir as tensões do campo, mas não para resolvê-las, começa a ser desenhado. O lema passou a ser “homens sem terra para terra sem homens”, atribuído ao presidente Médici, cujo objetivo era ocupar os supostos “espaços vazios”, na Região Amazônica. Ele próprio cria, por decreto datado de 16 de junho de 1970, o Programa de Integração Nacional (PIN) que acabou por dar as diretrizes da ocupação da Amazônia de forma dirigida pelo Estado.
No então Território Federal de Roraima, o PIN identificou, como área prioritária para sua atuação, a região considerada como foco de conflitos mais agudos, isto é, a região de campos naturais, denominada de lavrado pelos nativos, que se estende a partir do alto curso do rio Branco, por ambas as margens, e por áreas banhadas por seus formadores, principalmente pela margem direita, em torno do baixo curso do rio Uiraricoera. Esta área, junto às margens do alto rio Branco e baixo curso do rio Uiraricoera foi onde incidiu primeiramente e, de modo mais concentrado, a ocupação pecuarista no vale do rio Branco a partir das últimas décadas do século XIX. Em consequência, ali, os conflitos entre índios e regionais pela posse das terras adquiriram proporções mais graves, com a expulsão maciça da população indígena de seus territórios tradicionais, causando seu confinamento progressivo nas aldeias.
Uma nova geopolítica foi traçada para a Amazônia, os governantes militares conceberam, desde 1966, a chamada “Operação Amazônia”. Constituindo um conjunto de projetos, esta operação visava à implantação de uma malha de grandes eixos de comunicação e de transporte – como a Transamazônica que corta a floresta tropical em direção leste-oeste, a rodovia Belém-Brasília traçada em direção norte-sul e o traçado da BR-174, que ligou Manaus, Boa Vista e Caracas, através de um acordo internacional, cortando ao meio o território dos índios Waimiris-Atroaris.
Estes e outros elementos são amplamente tratados no livro que já se encontra disponível para quem desejar estudar e aprofundar a verdadeira história dos povos da Amazônia neste recorte precioso do professor Jaci Guilherme Vieira.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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