Neste 5 de setembro, celebra-se o dia da Amazônia. A data faz referência ao dia 5 de setembro de 1850, quando foi assinado por D. Pedro II o Decreto de Criação da Província do Amazonas, atual Estado do Amazonas. Passados 168 anos, a data não é de muita comemoração e sim de preocupação. O ‘progresso’ trazido para a Amazônia tem transformado drasticamente a região num processo tremendo de destruição e reconfigurações territoriais nem sempre condizentes com o papel que a região ocupa no planeta. Mas, não faltarão analistas para alertar sobre este tema. Por isso, nesse artigo, me ocuparei de um tema muito caro à Amazônia e pouco debatido, especialmente em nosso meio.
Nesse dia dedicado a Amazônia é importante recuperar uma lição dos povos ancestrais que a chamaram Nhandereko-há: “nosso modo de ser na nossa casa comum” de acordo com a língua geral – nheengatu. Mais que um vocábulo, Nhandereko-há significa um conceito de casa ampla, coletiva. Refere-se a todo espaço habitado e convivido: a floresta, os rios e lagos, a várzea e a terra firme. Refere-se à Amazônia compartilhada com diversos povos. Mais tarde, denominaram essa convivência de Bem Viver para definir um modo de vida diferente daquele trazido pelos colonizadores e muito diferente daquele imposto pelo “progresso” capitalista.
A ancestralidade é um ponto de partida fundamental na cultura do Bem Viver. Na sabedoria ameríndia o passado não é obsoleto, mas vínculo existencial até a geração presente. É o que permite o aprendizado permanente do cuidado com a vida cosmogônica que implica saber cuidar de nós mesmos, de nossas raízes, da terra, da ecologia humana numa comunhão ou aliança universal entre tudo e todos/as. Essa comunhão vem da terra, do chão onde se pisa, definida carinhosamente pelos Povos Ameríndios como Pachamama.
Os princípios da Pachamama na perspectiva do Bem Viver, baseiam-se na ecologia integral e no cuidado da casa comum. Isso significa que cuidar da casa comum, da Nhandereko-há, é cuidar de nós mesmos. Nesse sentido, a permanência das desigualdades sociais e econômicas, das injustiças e a violação dos direitos humanos, tão insistentes no modelo de sociedade capitalista, significa que não estamos cuidando de nós mesmos e muito menos da terra e de outros seres vivos. Significa que a humanidade tem se distanciado cada vez mais da Pachamama.
Na perspectiva do Bem Viver o cuidado é um elemento fundamental e significa atitude de amor e de respeito, quase uma veneração. Ou seja, eu preciso cuidar da criação porque sou parte dela. E a terra é a casa comum de toda a criação. Nesse sentido, a terra significa uma realidade ampla que representa o território de vida e de sentido das pessoas ou grupos que habitam e convivem em determinada porção do planeta. Significa construção de identidades.
Bem-Viver é a tradução para a concepção indígena do Sumak Kawsay, origem quéchua, ou Suma Qamaña de origem aymara. A experiência milenar dos Povos Ameríndios é um caminho possível de compreensão e aprendizagem dos conceitos e definições da cultura do Bem Viver. A vida destes povos representa um exemplo vivo de convivência, inter-relação e interdependência entre as pessoas e a natureza na perspectiva da ecologia integral em que toda a criação se mistura com a terra.
Na parte introdutória da Encíclica Laudato Si’ (2015) o Papa Francisco afirma que “esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respi¬rar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”. Nessa exortação, o Papa Francisco chama a atenção de toda a sociedade para a “comunhão universal” acenando para a interligação entre tudo e todos na grande casa comum.
Outro preceito importante para a definição do Bem Viver na Nhandereko-há dos Povos da Amazônia é o princípio da Terra Sem Males, mito do Povo Guarani, presente na espiritualidade de praticamente todos os Povos Indígenas. A Terra Sem Males refere-se a outro modo de vida que se contrapõe ao entendimento do significado do progresso técnico e industrial desenvolvido pelos grandes empreendimentos empresariais economicistas que vêm provocando imensuráveis processos de destruição da natureza e da biosfera que tem como referencial a mundialização do mercado econômico, sem regulação externa que cria pequenas ilhas de riquezas e, simultaneamente, zonas crescentes de miséria, pobreza e exclusão social e econômica em todo o mundo.
O antigo preceito dos povos indígenas antes da chegada dos colonizadores expressava uma inter-relação de equilíbrio e interdependência entre os seres humanos e a natureza numa permanente atitude de responsabilidade, de cuidado e proteção da sociobiodiversidade, em função de uma civilização justa, solidária e sustentável, totalmente diversa do progresso moderno. É alternativa ao modo capitalista de produção, distribuição e consumo.
De acordo com os preceitos do Bem Viver, ou destruímos a ecologia e nos afundamos com ela, ou nos salvamos através de uma nova forma de relação em que a vida dos seres humanos e de toda a ecologia esteja em primeiro lugar. Nessa perspectiva, celebrar o dia da Amazônia é reconhecer o valor dos povos ancestrais dessa região que incansavelmente lutam para que a vida prevaleça, mesmo diante de tanta morte e destruição.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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