A palavra saudade, no singular ou no plural, revela certa melancolia e algum sentimento de ausência ou privação. Amanheci no primeiro dia deste ano de 2014 com um programa da Globo News, em homenagem a Ary Barroso, que me conduziu a um desfile de lembranças.
Puxaram Tom Jobim do arquivo da emissora falando ao piano sobre Ary. Mário Lago narrou alguns causos da vida do compositor, que poderia muito bem ser chamado de multimídia, músico, criador e apresentador do programa A Hora do Calouro, que fez escola na época áurea do rádio, locutor esportivo e apaixonado pelo Flamengo com seus milhões de torcedores. Em seguida, interpretações clássicas de muitos de seus clássicos, na voz de Elizeth Cardoso, em É luxo só e no Rancho Fundo, de Maysa Matarazzo, em Risque, de Sílvio Caldas, em na Baixa do Sapateiro, e de Carmem e Aurora Miranda, em Aquarela do Brasil, nosso segundo hino nacional.
Começaram então a rodar a sucessão de imagens que povoam a história da minha e de muitas gerações. Há em cada letra e em cada som muito da vida, de marcas, instantes breves, acertos e desacertos, já inteiramente sepultados pelo tempo, sofridamente inexorável. E assim vamos juntando os fragmentos da existência, do que passou e do que ficou, em momentos que testemunhamos com anônima presença.
Numa música, a identificação de um amigo, ou de quem, mais próximo, já se tornou distante, por obra do infortúnio ou da indesejada das gentes, expressão emprestada de Manoel Bandeira, um dos nossos poetas maiores. Noutra, uma dorzinha um tanto quanto difusa, do amor incompleto, ou ainda que pleno de paixão, agora para sempre irrealizado.
E os shows, bem, continuam rolando na cabeça, como quadros vivos que jamais se perderão. Elizeth, no Olímpico Clube, Sílvio Caldas, no Rio Negro, Maysa, no Number One do Rio de Janeiro, e Mário Lago, autor de Nada Além, inesquecível na voz de Orlando Silva, conversando conosco sobre os acontecimentos de uma vida longa, na música, no teatro, na televisão, na política e na prisão, um encontro dos mais ricos, oferecido em Manaus pelo extinto Jornal do Norte.
No turbilhão de reminiscências, com razões associativas curiosas, chega-me um escritório antigo que ficava na Henrique Martins, esquina com Ruy Barbosa, atrás do Colégio Estadual, que vendia livros e álbuns de música. Revejo-o agora em detalhes, muitas portas, um balcão solene de madeira escura e escrivaninhas de igual distinção, uma delas ocupada por uma senhora que sempre nos recebia com solicitude e elegância. Tratava-se de uma firma de representação da Editora Mérito e de outras empresas do que então chamávamos de Sul do País. Lá adquiri minhas primeiras coleções de Machado de Assis e Lima Barreto e comprei coletâneas de Pixinguinha (Carinhoso) e Frank Sinatra (The man and his music), em velhos bolachões de vinil, que ainda guardo com carinho, mesmo depois de tê-los copiado em CDs. E tudo era pago em longas e suaves prestações, em carnês que eram destacados a cada obrigação cumprida. Uma outra Manaus, que palmilhamos desde o nascimento, na infância e na juventude, para sempre inalterada, na memória de seus devotos irrenunciáveis, dentre os quais me incluo com temperança.
Ary de Resende Barroso, com suas canções, foi o primeiro a afirmar nossa nacionalidade no exterior. Trabalhou nos Estúdios Disney e a Academia de Ciências e Arte Cinematográfica de Hollywood outorgou-lhe honraria máxima pela composição da trilha sonora do filme Você já foi à Bahia?, que mais tarde abriria caminho para os sucessos da bossa-nova que correm o mundo.
Olha, nunca me senti tão nativo aqui dos trópicos como num belo dia na Cidade Luz, em um dos salões suntuosos do Palais Garnier, ao ouvir Aquarela do Brasil, executada pela Sinfônica de Paris, uma surpresa que me deixou com os olhos em véspera de lágrimas. Confesso, e porque não, com lágrimas realmente incontidas, soltas. A vibração foi total, sob os acordes de um piano virtuoso, violinos, violas, violoncelos, oboés, fagotes, flautas, trompas, trompetes, trombones e tambores, senti a dimensão de minhas origens. No ar, a minha Pátria estava ali, todinha, na amplidão de seu território, com nossos sabores mais celebrados, da feijoada ao peixe fritinho do Amazonas, na magia que estremece o corpo e vincula a alma ao cheiro da terra, berço e túmulo. Acomodei-me numa poltrona lateral e ouvi a Nação, em silêncio interior e abissal, sob a regência do talento e do gênio do mineiro de Ubá, meu Brasil, bem brasileiro.
É a arte, expressão no mais alto grau da sensibilidade humana e do belo, a arte que faz e canta a vida. O mais são firulas vencidas, consumidas e sem o menor sentido, como tudo que não deixa raízes.