O mundo do séc. XXI distancia-se rapidamente do séc. XX, sobretudo em termos de insegurança global. Não somente com relação à negligência quanto a acordos, tratados, protocolos e convenções internacionais com vistas à promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento com responsabilidade ambiental, do desarmamento atômico, dentre outros instrumentos do direito internacional, mas também no que diz respeito à violência e à criminalidade comum, o séc. XXI vem “inovando” sob vários aspectos.
O século XX assistiu à globalização da violência ilegítima, do crime e de organizações criminosas enquanto o XXI iniciou globalizando o terrorismo – o atentado de 11.09.2001, nos EUA. A globalização da insegurança, combatida por meio de guerras, forças de segurança, aparatos de inteligência e armas tecnológicas, não foi ainda acompanhada de um proporcional e efetivo enfrentamento global. Por esse motivo, não se percebe real perspectiva favorável a uma globalização da segurança pública.
A economia do crime, impulsionada pela estruturação organizacional de atividades delituosas e pela profissionalização de operadores do crime, diversificou suas atividades, estendeu seus tentáculos pelo mundo, em quase todas as áreas, alcançando esferas públicas, além das particulares. Com isso, globalizou assim o tráfico de drogas, o tráfico de armas, o tráfico humano, a pirataria, o contrabando e o descaminho, dentre outras práticas criminosas.
Globalizou-se a execução por motivo fútil, em geral, associada ao tráfico de drogas. Globalizou-se o tráfico de armas. Globalizou-se o tráfico de órgãos e de mulheres. Globalizou-se a fraude e o crime virtual, inclusive o bullyng e a pedofilia a partir da internet.
Por outro lado, certas tecnologias de investigação e certas de medidas judiciais foram globalizadas. Globalizou-se a quebra de sigilo. Globalizou-se a interceptação telefônica. Globalizaram-se certos tipos de registro e gravação de imagens e sons, inclusive via celular. Globalizou-se o rastreamento de bens e do dinheiro, embora no Brasil exista tendência de retrocesso quanto a isso, em razão de limitações impostas recentemente ao COAF e à Receita Federal. Mesmo com a cooperação internacional e entre unidades federativas, em nível nacional, para realizar certas operações policiais e procedimentos investigativos, não se conseguiu efetivamente globalizar a segurança pública, de maneira a estancar fatores criminógenos e combater à altura o crime em suas novas estruturas e organizações.
Resultado disso, apesar da diversidade de características entre regiões do planeta, foi o predomínio da globalização da insegurança pública, do crime e das várias formas de violência em suas vertentes étnica, racial, doméstica, sexual, simbólica, faccional e institucional. Em paralelo a esse processo, o sistema prisional e a crescente população carcerária estão se tornando celeremente um problema de segurança pública de impacto global, uma vez articulados a organizações criminosas transnacionais.
Na gênese da globalização da insegurança está a mundialização de elementos da cultura criminógena, amparada e fomentada por certos padrões difundidos pelo sistema econômico e por viciados regimes políticos. Estes regimes investem na precarização da lucidez dos cidadãos (excesso de desinformação), na censura ao que pode servir ao esclarecimento crítico, no fomento à concentração de oportunidades, de investimentos e de recursos públicos, sobretudo destinando-os às mesmas regiões que têm sido prestigiadas desde sempre, e na desarticulação da participação cívica das pessoas na formação das decisões coletivas e das prioridades nacionais.
Constituídos por instituições de mediação institucional sem efetivo compromisso com a representatividade, esses regimes políticos apropriam-se do poder de decidir do cidadão e acabam por usurpar a soberania popular. Ao lado disso, a ordem econômica e social, centrada na tirania da acumulação/concentração do dinheiro, na precária formação humana e no excessivo materialismo consumista, conduz ao que Milton Santos chamou de globalização perversa. Tal modelo sociopolítico e econômico acentua o esgotamento dos recursos do meio ambiente, violenta sociedades, ridiculariza tradições respeitáveis, obscurece o discernimento, abandona a infância, vicia desde a adolescência e culmina no aviltamento da dignidade humana, muitas vezes, largada à própria sorte numa vida de crimes.
O modelo político-econômico perverso cria um padrão de relacionamento centrado na radicalização da “lei de Gérson” em escala global: levar vantagem a qualquer custo e sempre tentar fazer o errado parecer certo, justificado por delírios de consumo e de poder-ostentação, coisificando as pessoas e supervalorizando as coisas. Os ímpetos de se dar bem de qualquer jeito produzem os piores efeitos nocivos em dimensão nacional e internacional. É como se a logospirataria estivesse sendo naturalizada e institucionalizada em dimensão planetária.
Essa lógica perversa acaba por fazer prevalecer o interesse particular sobre o público, a ganância de uns poucos sobre o bem comum de quase todos, e das corporações econômicas e financeiras sobre as sociedades e as pessoas. Ilustra-a de modo claro a maneira como a previdência social e outros direitos fundamentais têm sido tratados em países como o Brasil. Impõem-se, com isso, às sociedades, de forma global, elementos inerentes à cultura criminógena, globalizando assim a insegurança.
Nessa dinâmica de mundialização da insegurança pública, cuja violência estrutural marca-se essencialmente pela usurpação privada dos recursos produzidos pelo esforço coletivo, pelo fundamentalismo da concentração do dinheiro, pela vulnerabilidade social, pela precariedade da educação, pelo consumismo de poucos, pela usurpação da soberania popular no âmbito das decisões nacionais, pela política de entorpecimento coletivo no individualismo e numa competitividade que cria barreiras à cidadania e à solidariedade, conduzindo as sociedades, em geral, à perversa era global da insegurança pública sistêmica.
Esse cenário de exclusão política, econômica e social vem acompanhado da criminalização dos movimentos sociais e cívicos como resposta padrão aos divergentes, generalizando a velha tática de nivelá-los aos desviantes. Quando não os criminaliza, encerra-os em “casas de recuperação” como se fossem doentes mentais ou “loucos varridos”: o holocausto do hospital colônia de Barbacena elucida bem esse processo. Dessa maneira, prorrogam-se indefinidamente, sem maiores incômodos, as injustiças sociais, econômicas e políticas. Em países “cordiais” como o Brasil, tudo é reduzido a um viciado e estéril jogo de disputas sem fim pelo poder. E continuamos sendo o país dos sem futuro. Contudo, não é assim em toda parte. Há sociedades que começaram a despertar da inércia cúmplice.
A partir das adversidades sociais e políticas, dentre outras, ocorreram manifestações em diversas sociedades, protestos antiglobalização em todo o planeta. Foram preliminarmente nesse sentido movimentos como primavera árabe (2010), “ocupe Londres” (2011-2012), “ocupe Wall Street” (2011), e manifestações populares no Brasil (2013). Neste último, a partir do estopim do aumento de tarifas de transportes coletivos em São Paulo, chegou-se ao ponto de manipular a opinião pública e protestos de rua para justificar a destituição (impeachment) de uma presidente legitimamente eleita, o que acabou por revelar-se num ardiloso golpe político. Os fatos deflagradores, todavia, estiveram ligados aos protestos por questões sociais, qualidade dos serviços públicos e contra a corrupção institucionalizada. É inadmissível, portanto, que governos e corporações econômicas continuem a fazer apenas “ouvido de mercador” ao dramático quadro social e político global. Os reflexos desse contexto recam sobre os indicadores de criminalidade, cuja resposta padrão tem se reduzido a um tratamento repressivo, típico do carcomido modelo poder-polícia-presídio.
É necessário compreender o que leva as pessoas ao crime e aos protestos de rua. Aos governos cabe dar efetivas respostas às questões postas pela sociedade antes que grande parte da população forme a equivocada convicção de que somente destruindo tudo, toda a ordem pública e aberta, será possível construir algo diferente e mais justo. Os governos nacionais e regionais não podem prosseguir na quase apatia quanto a essas questões. Precisam enfrentar direta e eficazmente os problemas que estão levando, apesar de todo o investimento no combate à insegurança, ao aumento da criminalidade e às sublevações populares. E não simplesmente criminalizar movimentos sociais e manifestantes.
Por essas razões, é fundamental visualizar e implantar modelos condizentes com a dignidade humana, condição básica para uma sociedade segura. Trata-se de globalizar a justiça, a liberdade e a paz, construindo coletivamente uma alternativa à globalização perversa. Outro modelo de ordenação econômica, política, social e ambiental.
A Constituição Federal brasileira consagra, desde 1988, como objetivo da República, em seu artigo 3o, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, garantindo o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, a fim de promover o bem de todos. Outras cartas constitucionais de Estados-nações e também declarações universais da ONU, inclusive bem anteriores à Constituição do Brasil, vão nesse mesmo sentido. Tais disposições presentes nos ordenamentos jurídicos nacionais e nas principais regulações de direito internacional são sinalizadores de um processo civilizatório sobrestado, interrompido – talvez pela voracidade da economia de mercado, revigorada pelo monopólio global absoluto –, que precisa ser retomado rumo a uma nova realidade. Enquanto isso não acontece, a economia do crime tende a prosseguir se expandindo, globalizando-se com maior poder de influenciar processos econômicos e regimes de governo, tornando-se cada vez mais integrada ao mercado.
Dessa forma, é essencial buscar uma direção distinta dessa ordem vigente. Uma ordem que globalizou variadas formas de violências, a partir da violência estrutural dos modelos socioeconômicos e de regimes políticos que não correspondem aos interesses de seus representados, e potencializou a insegurança de forma planetária. Na busca de outra perspectiva, cumpre vislumbrar não apenas o emprego de tecnologias, de armas, de policias, de prisões e de segregações em cárceres no combate à criminalidade, mas sobretudo comprometer-se com a globalização das oportunidades, das condições para promover a dignidade humana e da segurança pública.
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