Tem-se, às vezes, a impressão de que as pessoas estão perdendo a noção de democracia. Embora muitos tratem essa noção de modo ingênuo como sinônimo apenas de direitos, é necessário considerar que a democracia também importa em deveres ou compromissos com a condição de democrata. Apesar dos jogos e encenações, democracia não é mera ficção nem devaneio. Requer coerência entre fins e meios, princípios e métodos, ideias e atitudes concretas.
Uma dessas questões centrais refere-se à liberdade política e às opções partidárias que os cidadãos fazem e tem direito de exercer. Num regime de orientação democrática, aonde o pluralismo político previsto constitucionalmente se converteu também num pluralismo partidário, é essencial a capacidade de manter o discernimento lúcido em relação à responsabilização das pessoas que integram esses partidos e exercem mandatos eletivos de representação política. A tendência à generalização e ao tratamento desrespeitoso a quadros partidários, apenas pelo simples fato de pertenceram a determinada sigla ou serem dela simpatizantes, conduz a episódios lamentáveis e criminosos de violência simbólica, comportamental e física. Uma postura incoerente com o espírito da democracia, mas perigosamente alinhada com a ideologia fascista.
Vê-se, por vezes, pessoas xingando-se, sendo indelicadas e até mesmo brigando tão somente por conta de posições individuais em favor desse ou daquele partido, desse ou daquele quadro partidário, desse ou daquele simpatizante de organização partidária. Parece que somente é possível expor determinadas posições ou atitudes se forem alinhadas ou de acordo com certas corporações ou grupos intolerantes. Como se não fosse permitido divergir e contraditar os mesmos. Como se não houvesse opção política fora de alguns que se julgam donos do poder e senhores da verdade, únicos merecedores de exercer o comando estatal. Como se não fosse possível exercitar a cidadania, de modo civilizado, diante do atual cenário de instabilidade, fora da anuência desses grupos econômicos, segmentos sociais e corporações políticas, cuja marca comum tem sido a irracionalidade, a manipulação e a intolerância. No entendimento de Carlos Bernardo Pecotche:
“A intolerância fecha os caminhos da compreensão, ao mesmo tempo que os da sensibilidade, caminhos aos quais só têm acesso as almas que sabem de sua semelhança com as demais.”
Chega-se ao ponto de denegrir ou até negar às pessoas o direito de manterem suas opções partidárias e de expressarem suas posições ideológicas. Isso constitui absurdo irracional quando se trata de um regime de perspectiva democrática. As pessoas são taxadas, estereotipadas e sofrem repressão simbólica por conta do exercício do direito à filiação partidária fora do que certos grupos, corporações e segmentos tentam impor como legítimo ou aprovável. Trata-se de uma espécie de patrulhamento ideológico tipicamente nazifacista que, na prática, viola o direto à liberdade política e ao pluralismo partidário.
Por mais que se possa discordar das opções partidárias, sua base ideológica, programática e de seus quadros partidários, desde que não violem os fundamentos do próprio Estado de direito democrático, não se pode constranger ou negar às pessoas o direito à filiação ou adesão a que partido for. É preciso respeitar as escolhas e as opções políticas, ideológicas e partidárias de alguém por mais distintas que elas possam ser daquelas que estão colocadas como hegemônicas ou predominantes ou ainda com quais nos alinhamos. Não há possibilidade de convivência democrática sem o respeito mútuo e às escolhas legais feitas pelos cidadãos quanto às suas opções políticas lícitas, resguardadas constitucionalmente.
Por essa razão, o que esperar de pessoas que são constrangidas por conta de sua opção política e partidária senão a resistência e a veemente reação? É o que estamos começando a testemunhar, cada vez mais, diante das emergentes irracionalidades impostas pelo atual jogo político. Pessoas se difamando, constrangendo, desrespeitando, rompendo relações por conta de não conseguir exercitar, de fato, o convívio democrático. Algumas querendo impor a outras uma opção partidária ou atributos de outros quadros partidários, em flagrante de injusta e irracional generalização e responsabilização. Algo sem precedentes, mesmo quando comparado com a era do impeachment do ex-presidente Collor. Preocupa bastante que irracionalidades fascistas como essas cheguem a influenciar decisões pessoais, profissionais e cívicas. E torna ainda atuais as palavras de Lauro Muller (séc. XIX):
“É a intolerância que nos desgoverna, ou venha ela do exagero partidário, ou nasça da ambição de conservar ou adquirir o mundo. É dela que nascem os governos prepotentes e as oposições facciosas; dois extremos que se confundem na obra comum de destruição das liberdades políticas.”
A democracia, a consciência e convivência politicamente plural, o respeito aos valores democráticos não pode ser seletivo nem discriminatório. Não se pode confinar o exercício da cidadania apenas a um ou outro partido ou instituição de mediação política. O pluralismo político implica no reconhecimento do mesmo direito a todas as instituições legítimas de mediação política e aos partidos legalmente constituídos. A vida democrática requer alguma maturidade cívica pra que possa estabilizar-se e se desenvolver, uma vez que isso não é possível quando se decai em extremos de radicalismo, maniqueísmos e irracionalidades que discriminam as pessoas por suas opções políticas, ideológicas e partidárias. A liberdade política que serve a “Pedro tem que servir também a João” e vice-versa. Não se pode tomar como democratas apenas aquelas pessoas que fizeram as mesmas opções políticas, ideológicas e partidárias que certos grupos, corporações e segmentos tentam impor. Isto é, na realidade, autoritarismo fascista, ou seja, a forma mais violenta, brutal, nociva e corrompida de lidar com as escolhas e processos políticos. Nada mais distante de um regime de inspiração democrática.
Desse modo, para ser alcançar um mínimo de coerência e legitimidade ao se exercer o direito de expressar certas posições políticas, é imprescindível respeitar o direito das demais pessoas fazerem a mesma coisa, por mais divergentes que sejam as mesmas. Somente há democracia quando se reconhece o direito à diferença e quando se respeita a legitimidade do conflito. Se isso não houver, prevalecendo apenas discriminações, constrangimentos mútuos, ofensas grosseiras e outras atitudes irracionais, tende-se ao predomínio do fascismo imposto por certos segmentos, corporações econômicas e organizações partidárias. Diante disso, as reações a este modelo podem alcançar níveis de irracionalidade de igual proporção. Portanto, democracia não pode ser “faz de conta”, mero jogo ou encenação. Democracia, tal como a justiça, não pode ser seletiva. A convivência democrática requer um básico de maturidade e de respeito de modo a viabilizar a coexistência entre os diferentes e, ainda mais, entre os divergentes. Sem isso, é mera demagogia fascista, que merece proporcional resistência e persistente reação em defesa da efetiva pluralidade política e partidária, inerente ao um regime democrático esculpido na constituição brasileira.
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