Da Ascom PGR
BRASÍLIA – O procurador-geral da República, Augusto Aras, encaminhou parecer ao STF (Supremo Tribunal Federal) opinando pela inconstitucionalidade de um trecho da Resolução 2.232/2019, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabelece o seguinte: “A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.
Na avaliação do procurador-geral, a norma extrapola a relação médico-paciente – regida pela ética médica e pela vontade livre e esclarecida do paciente –, invadindo o campo do direito.
A manifestação de Augusto Aras se deu na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 642/DF, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Psol (Partido Socialismo e Liberdade), que questiona o inteiro teor da resolução. Aras, no entanto, vislumbra inconstitucionalidade somente no parágrafo segundo do artigo 5º do ato normativo.
Em recomendação publicada em setembro de 2019, o Ministério Público Federal (MPF) já havia pedido a revogação do trecho por contrariar o Código de Ética Médica, o Código Penal, a Constituição e as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde para assistência ao parto nas quais se reconhece que apenas em casos de iminente risco de morte é possível o médico adotar medidas necessárias para a preservação da vida no atendimento ao parto em contrariedade ao desejo materno.
No documento, alerta-se também que, no binômio mãe/feto, caberá à gestante ponderar entre os riscos à sua vida e à vida do feto quando fizer opções por procedimentos terapêuticos relacionados à gestação e parto, conforme princípios constitucionais da dignidade humana, da legalidade e da autonomia.
No documento encaminhado ao Supremo, o procurador-geral acrescenta que, no exercício da profissão, o médico tem o dever de esclarecer quais as consequências das possibilidades de tratamento, tanto para a mulher quanto para o feto. Nesse sentido, deve ter em vista que o ordenamento jurídico protege a vida da mãe quando a continuidade da gestação coloca em risco sua vida (conforme artigo 128, inciso I, do Código Penal).
Quanto à expressão “abuso de direito”, empregada no ato do CFM, Aras considera o termo conceitualmente impreciso. Segundo o Código Civil, a expressão é definida como ato ilícito praticado por titular de direito subjetivo que, ao exercê-lo, excede os limites da boa-fé ou bons costumes de forma manifesta. No contexto em que foi utilizada, a expressão extrapola sua atribuição regulamentar e passa a traduzir-se em juízo de valor de conteúdo jurídico, e não de conteúdo médico.
Para Augusto Aras, é importante atentar para o princípio da bioética médica voltado à mulher gestante, o qual encontra fundamento tanto em leis nacionais quanto em tratados internacionais, sobretudo na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como Convenção de Belém do Pará). Assim, a interpretação da temática deve ser feita à luz de princípios constitucionais em compatibilização com normas éticas.
“O art. 5º, § 2º, da Resolução 2.232/2019, do CFM, portanto, não acrescenta parâmetros objetivos aos já postos nas leis de regência e na própria resolução, e trata de juízo de caráter jurídico (e não médico), em norma que exorbita da relação médico-paciente, regida pela ética médica e pela vontade livre e esclarecida do paciente”, resume o procurador-geral. Por fim, o PGR opina pela procedência parcial da ADPF, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 5º, parágrafo 2º, da Resolução 2.232/2019 do CFM.
Autodeterminação do indivíduo
Ao contrário do que argumenta o partido político, o procurador-geral afirma que os demais trechos da resolução do CFM não impõem restrições indevidas à capacidade individual de autodeterminação. Ao contrário, conferem segurança jurídica a médicos e pacientes no estabelecimento de relações terapêuticas pautadas pela efetiva consideração dos recíprocos deveres e direitos de ambas as partes.
“A recusa terapêutica, como possibilidade atribuída ao paciente de consentir ou recusar tratamentos e procedimentos de saúde, é manifestação da autodeterminação do indivíduo, corolário da dignidade humana, um dos fundamentos da República brasileira”, afirma.
No entanto, ressalva que essa faculdade de recusar tratamento de saúde, sem interferência de terceiros ou do Estado, deve se limitar à esfera individual e não afetar crianças, adolescentes e incapazes ou representar risco à saúde pública e à coletividade.
Confira o parecer da PGR na íntegra.