Estarrecedor, no mínimo, os ataques contra pessoas em mesquitas da cidade de Christchurch, sul da Nova Zelândia, ocorridos na última sexta-feira, 15 de março de 2019. Em curtíssimo tempo, outros atentados terroristas foram praticados noutros países com características de crimes de ódio. Não é de hoje que os extremos são perigosos.
Os extremos no tempo
Extremismos seguem a história humana e deixam rastros de tragédia e de terror por toda parte. Pior é que seus perturbadores efeitos ecoam no tempo, reeditando em distintos momentos matanças e extermínios. Um verdadeiro surto de horrores aparentemente eventual, mas que na realidade é bastante frequente e agora cada vez mais habitual.
Desde a antiguidade, os extremistas deflagram conflitos e guerras, como também nefastos processos opressivos, incluindo o extermínio, o genocídio, o escravismo, o preconceito, a xenofobia, a intolerância religiosa, a discriminação, a violência étnica e o terror. Civilizações inteiras acabaram sendo exterminadas por conta do extremismo.
Na Idade Média, a “caça às bruxas” também vitimou a muitos inocentes. A invasão de Jerusalém pelos muçulmanos provocou as cruzadas, também de consequências extremas. O genocídio de povos e culturas ameríndias no processo de colonização do novo mundo, o tráfico negreiro, e guerras coloniais foram motivadas, muitas vezes, por ímpetos extremistas.
Já na modernidade, os extremos de truculência social pela Revolução Industrial e pela maioria das revoluções políticas, gestadas no calor dos extremos, imbuídas dos mais distintos interesses, deixaram um rastro de fatais injustiças, sangue e terror.
Períodos de chacinas motivadas por extremismos políticos e econômicos são mais frequentes na história humana do se imagina. O que dizer então do século XX, que produziu o totalitarismo, o nazifascismo, o stalinismo, a guerra fria e outros extremos? Muito acertadamente, o historiador inglês Eric Hobsbaum chamou-o de a “Era dos Extremos”. O problema é que, sob esse aspecto, parece que o século XX não acabou.
O século atual, por esse ângulo, inaugurado com os atentados de 11 de setembro de 2001, nada deixa a desejar aos demais que o antecedem, embora aparentemente tenhamos nos tornado um pouco mais “civilizados” por conta do desenvolvimento científico-tecnológico. O século XXI lamentavelmente tem reforçado a tendência ao terror extremista. Bastante expressivo é o episódio envolvendo o jornal francês Charlie Hebdo, a seu modo, também adepto de certos extremos. A irracionalidade, em sua versão mais perigosamente passional, para esta em vias de difusão global.
Extremismo: impactos sobre as liberdades e direitos fundamentais
Nessa história de extremos, impaciência, incapacidade para o diálogo racional e a divergência equilibrada, seguramente não há inocente, contudo, muitos inocentes foram vitimados pelos extremos de ódio e violência. Restou apenas a exacerbação do irracional e da passional pós-verdade, processadas num círculo vicioso de frequente retomada do terror. Os fatos se sucedem de tal modo que o tempo fica exíguo para dar conta do amontoado de tragédias, impactantes às liberdades e direitos fundamentais.
Direitos e as liberdades, arduamente conquistados, que deveriam ser empregados para combater o obscurantismo, a injustiça, a espoliação econômica, a opressão política e os fundamentalismos religiosos que dão causa ao terror, não poderiam ser utilizados para fomentar ainda mais os extremismos entre partes já ressentidas e tensionadas. Não faz sentido empregar as liberdades para “acender a pólvora” entre os passionais. Recorrer a ideologias e meios extremos tem se demonstrado historicamente inviável para se edificar a liberdade, a justiça, a pactuação e a paz, pois essas conquistas dependem muito mais de diálogos lúcidos, de negociações voluntárias, de consensos racionais e da coexistência responsável.
As liberdades de opinião, de expressão, de ir e vir, de reunião, de associação, de consciência e de crença, de culto, dentre outras, precisam existir coordenadamente e não de forma antagônica e destrutiva, pondo-se a serviço do convívio humano solidário e da qualidade de vida, evitando pôr em risco a vida coletiva. Não se pretende nem é possível negar a legitimidade do conflito, da divergência e da diversidade de interesses entre pessoas, grupos e nações. Conflitos são comuns e frequentes, todavia, o tratamento deles de maneira adequada permite que os mesmos sejam superados em favor do bem maior, que é a preservação e desenvolvimento da própria coletividade. O sentido maior das liberdades e dos direitos é vida digna em sociedade.
O Brasil no contexto dos extremos
No Brasil, a dignidade humana é disposta como postulado central de todo o ordenamento jurídico, normativo, administrativo e institucional (art. 1º, III/CF). Quando trata das relações internacionais (art. 4º), a atual Constituição brasileira faz opção pela “solução pacífica dos conflitos” (VII) e pelo “repúdio ao terrorismo e ao racismo” (VIII) como consequências também decorrentes da adesão à “prevalência dos direitos humanos” (II) e à “autodeterminação dos povos” (III). Pelo menos tudo isso já consta, ainda que em versão legalmente teórica, na carta política fundamental do país. Carece de efetividade.
A vida em grupo requer compromisso para com o diálogo inteligível e a boa vontade como meio para lidar com divergências, conflitos e gerar consensos responsáveis. Distante do empenho para o entendimento, a perspectiva para superação dos embates, mesmo os corriqueiros, não se realiza. O resultado é a radicalização das diferenças e dos desacordos em intermináveis contendas e disputas, por vezes manifestos em sanguinárias guerras, atentados, extermínios, genocídios e outros tantos terrores de ontem e de hoje.
Os valores fundamentais da sociedade aberta necessitam conviver de forma respeitosa, proporcional e não de modo habitualmente absoluto e violento. A tendência à passionalidade inviabiliza a racionalidade, o diálogo lúcido e o consenso responsável. A democracia se forma da busca do pacto ou contrato social, cujas condições demandam responsabilidade para com o diálogo responsável e o comprometimento com a dignidade da pessoa humana, refletida na observância aos direitos fundamentais. Por isso, a assistência social aos mais vulneráveis e o acompanhamento da saúde mental aos cidadãos em geral são muito mais eficazes socialmente do que meramente facilitar o acesso a armas de fogo.
Atentados de ódio praticados por organizações terroristas levaram diversos países a rever sua política de facilitar o acesso dos cidadãos comuns às armas de fogo, uma vez que a ausência de maior controle das mesmas tem favorecido aos criminosos do terror. A maioria dos brasileiros aparenta presumir estar meio que imune aos atentados de terrorismo, em grande medida, por não ter essa tradição e pelo país ser muito miscigenado, destino de muitas gentes e culturas que se misturaram. Por conta disso, muitos cobram que o Brasil facilite o acesso às mencionadas armas. Entretanto, ultimamente, não é isso que se vem observando, vide casos como o da Escola em Realengo/RJ (2011), o de Marielle Franco/RJ (2018) e, mais recentemente, o da escola “Raul Brasil” (2019), em Suzano/SP. Atentados que revelaram o terror sob outras faces.
A tese de facilitar o acesso às armas de fogo como suposta medida para conter a violência e a insegurança pública não encontra fundamento algum em dados estatísticos sérios. A mesma apenas evidencia o quanto as pessoas e instituições não têm a menor ideia de como se socializam os indivíduos na realidade brasileira e latino-americana. No Brasil, anualmente, ocorrem mais de 63 mil mortes violentas intencionais. Como o cidadão comum vai defender a si, aos outros, a sua família com uma arma frente a quadrilhas e organizações que dispõe de metralhadoras, fuzis e outras armas pesadas? Sem contar aqueles com tentáculos junto às instituições e dos que estão empoderados em cargos estatais, por vezes exercendo mandatos. A tese do acesso facilitado às armas de fogo mostra como é fácil, desonesta e perigosa a manipulação do assunto por pessoas, grupos e empresas sem escrúpulos, cujo propósito maior é tirar vantagem econômica com a venda de produtos bélicos.
Na realidade, o efeito do acesso facilitado a armas, numa sociedade latina, em que a grande maioria é classificada como socialmente vulnerável, sem assistência de saúde mental, sem razoável nível de formação nem socialização numa cultura de cidadania, pode ter o efeito inverso e agravar em muito a situação da violência, da criminalidade e da insegurança pública.
A tese do acesso facilitado às armas de fogo, no contexto da realidade brasileira e latino-americana, é muito mais uma via para oportunizar grandes lucros às indústrias armamentistas e a grupos ou agentes que a promovem, com base na velha e inconsequente solução passional, sem responsabilidade social alguma. Na verdade, é de uma irresponsabilidade sistêmica sem paralelo, pois transfere para o cidadão, pessoa física, aspectos da responsabilidade do Estado para com a segurança pública. Além disso, torna mais difícil o trabalho policial e ação de órgãos de controle. Não deixa de ser, ao seu modo, uma solução extremista com base num obscurantismo extremado.
Extremos de obscurantismo e passionalidade
Não é de hoje que o extremismo vicia o discernimento, compromete o diálogo, limita a liberdade e redunda em violência não apenas simbólica, mas também física. Basta perceber em que pode resultar o fanatismo de torcedores de qualquer modalidade esportiva, a excessiva passionalidade nos relacionamentos, a disputa exageradamente acirrada entre coletivos. O que dizer então de grupos organizados em torno de uma causa que convertem em dogma, seja profissional seja religioso seja cultural? Obviamente, esses grupos podem usar tanto a religião quanto a imprensa, um partido, uma empresa, segmentos sociais ou agentes econômicos para ofender, insultar, fomentar preconceitos, praticar discriminações e ainda pegar em armas para praticar atos de terror.
A título de ilustração, pode-se recorrer às últimas eleições gerais no Brasil (2018), as quais ocorreram num ambiente desfavorável a um mínimo de diálogo racional, ao lúcido convencimento e à formação de consensos responsáveis. Na realidade, não houve racionalidade nem diálogo entre os grupos que disputaram o pleito. Todos tinham razões e ofensas que os tornaram surdos uns para com os outros. Portaram-se semelhantes a portadores de doenças mentais e de certas psicopatologias. As redes sociais e veículos de impressa, ambientes em que proliferaram as fake news, evidenciaram fartamente essa logospirataria generalizada. Em face desse cenário, resultaram apenas opções extremas, as quais na prática não constituíram reais alternativas ao país. Apenas mais do mesmo, todavia, com maior irracionalidade, passionalidade e radicalização. Em síntese, outro certame eleitoral em que se perdeu a oportunidade de construir consensos mínimos em prol da nação e de firmar compromissos essenciais entre os diversos segmentos da sociedade brasileira, sobretudo na busca de construir um país com alguma perspectiva de superação das crises mais graves e de fomentar um processo de desenvolvimento socioeconômico.
O potencial dos extremos
Os extremos tendem a colocar tudo a perder, pois constituem efetivos riscos à garantia das liberdades e dos direitos fundamentais. O extremismo é nefasto na medida em que não hesita em recorrer à violência e ao terror, justificando-se quase sempre em causas nobres, para “legitimamente” destruir aquilo que alega defender: a vida, a liberdade, a dignidade humana. Matam-se povos, grupos e pessoas em nome de Deus, da segurança pública, de lucros, da dominação econômica tanto quanto por causa das disputas de poder, do controle de negócios, da aquisição de patrimônio, de um celular, de um tênis ou de meros dez reais. Como afirma o Milan Kundera: “Os extremos são a fronteira além da qual termina a vida…, é uma velada ânsia de morte”. Os extremismos, ainda que simbólicos, têm enfim um grande potencial para a injustiça, a destruição, o terror.
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