A vida começa muito cedo na comunidade Nossa Senhora de Nazaré do Barro Alto localizada no Médio Rio Solimões, no município de Coari, próximo da divisa com o município de Tefé. Ainda são 04:30 horas da madrugada e já é possível sentir o aroma do café sendo coado nas casas e um burburinho dos pais que já se preparam para o trabalho, ligam o rádio e vão aumentando o volume para despertar as crianças. Quando os galos começam a cantoria do despertar matinal, muitos já estão à caminho da roça. O aroma do café fresquinho se mistura ao cheiro bom dos temperos e anuncia que o almoço já está sendo preparado.
Ainda é escuro quando partem as primeiras famílias. As crianças vão à frente, brincando, saltitando, carregando as coisas mais leves e a lanterna ou lamparina de querosene para iluminar as trilhas. Também carregam o caldeirão com o almoço, alguma fruta, geralmente banana madura. Logo atrás seguem os homens, carregando as ferramentas de trabalho: enxadão, terçado, enxada, foice, e muitas outras coisas. As mulheres carregam as crianças de colo atadas junto ao corpo utilizando a técnica da ‘peconha’ que consiste numa tira de tecido atada ao ombro, deixando as mãos livres para carregar sacolas com garrafa de café, copos, talheres, garrafas com água.
A caminhada para a roça dura cerca de 40 minutos em ritmo acelerado, por entre as trilhas sinuosas, abertas no interior da floresta. Segundo os cálculos dos moradores é possível que as trilhas tenham mais de 4 km de distância da comunidade. É um caminho cheio de obstáculos, com áreas escorregadias, troncos e galhadas interrompendo o caminho, fios d’água, pinguelas, atoleiros…
As crianças chegam primeiro à casa de farinha, deixam por lá as coisas que carregam e vêm de volta ao encontro dos mais velhos contando as novidades e ajudando-os com as coisas mais pesadas. A casa de farinha tem um formato de “barracão” com teto de vigas de madeira coberto com palhas de palmeiras, sustentado por quatro troncos de árvore, dispersos num retângulo, sem paredes.
No centro fica o forno de metal para torrar a farinha. O forno encontra-se afixado sobre uma fornalha com aproximadamente 70 centímetros de altura e dois metros quadrados de diâmetro. As paredes da fornalha medem um palmo de espessura, ou aproximadamente 10 centímetros, construídas com estacas de bambu, taboca, ou hastes vegetais fixadas ao chão em formato circular, entrelaçadas com fibras de tabocas preenchidas, completamente, com barro argiloso. Toda a construção da fornalha é artesanal e, no geral, é “trabalho de mulher”. O acabamento das paredes respeita o assento do forno que deve ser minuciosamente preenchido para não ficar nenhuma fenda que possa vir a dispersar o calor durante a torrefação da farinha.
No interior da fornalha são colocados os troncos de madeira seca para aquecer o forno, mantendo uma pressão interna de calor que pode chegar aos 300º ou 350º graus. As crianças são encarregadas de buscar a lenha para a manutenção do fogo que deve ser permanentemente alimentado durante o período da torrefação. Ao redor do forno, as mulheres enfrentam uma temperatura em torno de 50º a 60º graus durante a torrefação que pode durar até 45 dias seguidos. A depender da lenha que alimenta o fogo, a fumaça pode ser mais ou menos intensa, o que não deixa de ser um grande incômodo para os olhos que permanecem com ardume e irritação o tempo todo, chegando à perda parcial ou total da visão, conforme alguns casos averiguados nesta e em outras comunidades próximas.
Logo depois de alojar as coisas no barracão e acender o fogo para manter o almoço aquecido, as mulheres distribuem as tarefas e todos se dirigem à roça. Cada família tem uma porção de roçado de tamanhos diversos, a depender da capacidade de cultivo de cada uma. Os agricultores e agricultoras seguem o sistema agroecológico de produção guiado pelos modelos justos, economicamente viáveis e sustentáveis ecologicamente. Definem áreas pequenas no meio da floresta que são cultivadas por até 4 anos consecutivos. Após esta temporada o terreno permanece em descanso para reflorestamento que ocorre de maneira natural com a simbiose da floresta. Esta clareira no meio da floresta comporta 15 roças, cada com uma média de mil covas de maniva.
Logo cedo os rapazes começam a fazer as covas para plantar as manivas que as mulheres e crianças já estão cortando em pequenos pedaços de uns 10 centímetros de comprimento cada. Logo surgem, em meio às coivaras, uma fileira de covas superficiais da espessura do enxadão, com uns 10 centímetros de diâmetro por 10 de profundidade. As crianças carregam os pedaços de ramas cortadas e vão entregando às mães que as alojam, em pares horizontais, em cada cova que vai sendo cuidadosamente aterrada. Outras crianças vêm logo atrás e, com os pés, assentam um pouco a terra para a cova ficar mais firme e não ser desenterrada pelos animais.
Todos, inclusive as crianças, vestem roupas bastante surradas, mas, de pernas e mangas alongadas para se protegerem um pouco do sol que a cada hora vai se tornando ainda mais escaldante. As crianças menores também estão encarregadas de buscar água fresca no igarapé e, de quando em quando, oferecer aos pais e irmãos mais velhos. Ora estão no roçado ajudando as mães com as ramas de maniva, ora estão na casa de farinha atiçando lenha ao fogo, ou estão no igarapé tomando banho com roupa e tudo e, ao mesmo tempo, enchendo as garrafas pet com água limpa e fresca.
Por volta das 11 horas, todos se dirigem à casa de farinha para almoçar. Os caldeirões com a comida permaneceram toda a manhã sobre um pequeno fogão à lenha num buraco cavado num dos extremos do barracão. As comidas são variadas com arroz, feijão, carne de tatu, batata cozida, jaraqui frito, couve, banana frita… e a farinha que fica guardada ali mesmo, num latão bem fechado nos altos do barracão. Uma das mulheres desce o latão e recolhe uma cuia cheia de farinha que é distribuída entre todos. Apesar de cada família levar seu caldeirão de comida, na hora do almoço tudo é compartilhado.
Após o almoço as mães ordenam aos filhos que frequentam a escola no período vespertino que se dirijam para casa para tomar banho, trocar de roupa e se preparar para ir à aula às 13 horas. Um jovem ou adulto sempre é escalado para acompanhar as crianças na travessia da floresta. No meio do caminho cruzam com aqueles que estudam de manhã e já estão indo para continuar o trabalho na parte da tarde.
A casa de farinha é coletiva, foi construída em sistema de ajuri ou puxirum e pertence às famílias que ajudaram na construção e a utilizam para fazer sua farinha, para servir de apoio durante a plantação e cultivo da maniva até a colheita. No intervalo do almoço as mulheres aproveitam o pouco tempo de descanso para consertar alguma coisa na casa de farinha. Fazem pequenos reparos na fornalha, reformam o tipiti, as peneiras, varrem o chão do barracão, recolhem fibras vegetais para os reparos, remendam o tecido da peneira, reforçam o arco dos paneiros, fazem o polimento do remo que é usado para revirar a massa peneirada dentro do forno durante a torrefação da farinha.
O ponteiro do relógio já se aproxima das 14 horas e, aos poucos, todos vão se preparando para retornar ao plantio aproveitando que o sol está mais ameno. Nesta hora, a casa de farinha se assemelha a um centro de convenções onde todos conversam animadamente, fazendo planos para a farinhada prevista para daqui uns seis ou sete meses.
As mulheres dividem novamente as tarefas e ordenam que as crianças menores permanecerão na casa de farinha para cuidar dos bebês que dormem nas redes. O protagonismo de todo o processo organizativo é das mulheres que coordenam todos os arranjos políticos da divisão social do trabalho no interior da casa de farinha e também no roçado.
Na parte da tarde o trabalho é mais exaustivo sob forte calor. Por isso a jornada deste período é bem mais curta, já que retornam antes do sol se pôr para evitar atravessar a floresta ao anoitecer e escapar da picada do mosquito da malária que, nesta época do ano ataca sem tréguas. Todos voltam para casa e na manhã seguinte repetem o mesmo ritual até terminar o plantio. Depois seguem por oito meses cuidando da roça, capinando as fileiras, revirando a terra e cuidando da rama que vai despontando. É um tempo de espera e preparação para a colheita que logo vai chegar.
(Fragmento de um capítulo de minha autoria, publicado no livro O Ethos das Mulheres da Floresta, organizado por Iraildes Caldas Torres, em Manaus, Editora Valer, 2012).
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