Além do Festival da Canção de Itacoatiara (Fecani), o município tem uma das escritoras mais importantes da Amazônia contemporânea. Dada a sua importância literária, a obra da escritora Sylvia Aranha de Oliveira Ribeiro (1930), radicada em Itacoatiara desde da década de 1970, foi o tema da tese doutoral de Álvaro Jardel Conceição Santos de Oliveira, desenvolvida e apresentada esta semana no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) na área de concentração em literatura, memórias e identidades, sob a orientação da professora doutora Marlí Tereza Furtado.
Com o sugestivo título ‘onde está teu coração? uma leitura da inquietude na ficção de Sylvia Aranha’, a tese doutoral representa um marco na análise literária da Amazônia. Com graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o recém doutor levou para a literatura chaves de leitura da Amazônia num ensaio interpretativo da extensa e densa obra de Sylvia Aranha, que no próximo dia 05 de setembro completará 90 anos.
Fundadora da Associação Dom Jorge Marskell que há 20 anos presta importantes serviços de cidadania, arte e literatura à população de Itacoatiara, Sylvia Aranha conhece, como ninguém, o povo das águas e das florestas da Amazônia. As histórias deste povo simples e lutador são representadas na literatura desta autora que escreve para o povo ler e se reconhecer nos personagens fictícios que assumem a luta em defesa da Amazônia e seus povos.
Na referida tese, o pesquisador afirma que “estuda a inquietude a partir da prosa de ficção da escritora Sylvia Aranha”. Ao mesmo tempo, procura “compreender e explicar, considerando parte do seu itinerário existencial, o modo como sua “personalidade literária” foi formada, tomando como ponto de partida conjuntural o final da década de 1970, quando ela se muda de São Paulo e passa a morar, em definitivo, no estado Amazonas”.
De acordo com o pesquisador, “ao figurar uma obra literária que elabora a realidade a partir do estado de inquietude e do problema da libertação dos homens e mulheres, Sylvia Aranha constituiu-se numa intérprete contemporânea da região amazônica”. A tese analisou a extensa obra da escritora, mas, priorizou a “análise e interpretação da sua prosa de ficção formada, ao todo, por quatro romances: ‘Encontro das águas’ (1998; 2011), ‘Comandante Lourenço’ (2006), ‘Francisca e a utopia da liberdade’ (2010) e ‘Batalha Naval de Itacoatiara… onde o Sul se encontra com o Norte’ (2014).
A tese assume otexto ficcional como objeto empírico do trabalho literário numa visão conceitual que concebe a literatura como um sistema simbólico. Nesta perspectiva, a obra de Sylvia Aranha é “tomada como a expressão de uma pedagogia da palavra imaginada, porque conduz o leitor a imaginar uma realidade onde os sujeitos, que ainda não têm lugar no discurso, são conduzidos a um território de latências possíveis de serem realizadas e de imagens de si reinventadas”.
A tese conclui que a literatura de Aranha “provoca no leitor a reflexão e a ação criativa sobre a realidade, em vista de sua transformação, começando pelo próprio discurso literário”. O estudo dos quatro romances foi realizado na tese de forma analítica e interpretativa, o que permitiu identificar a “inquietude dos protagonistas de Sylvia Aranha como o elemento central de análise, permitindo interpretar o seu discurso literário”.
O recém doutor afirma “que na prosa de ficção de Sylvia Aranha há a figuração de uma comunidade do porvir e em movimento. É a imagem de uma geografia simbólica, onde emergem outras formas de existência, bem como, seus discursos. Nela, a suspeição da vida é posta em suspenso e, no seu lugar, repousa uma sublevação afirmativa do existir. Nela, os personagens perdidos e aprisionados no labirinto da opressão, são libertados. Nela, os protagonistas como seres inquietos, passam à consciência de seres inconclusos, buscadores do mais”.
O final da tese é carregado de emoção, ou melhor dito, de transfiguração, ao apresentar os “desfechos do romance ‘Batalha Naval de Itacoatiara’ o protagonista ‘Francisco’ surge como um herói inconcluso, que desejou buscar “ser mais”, avançando para as águas mais profundas, se engajando, de maneira radical, na luta contra o analfabetismo e na defesa dos meios de reprodução da vida na região do Arari, naquela altura, imaginada como uma esperançosa comunidade amazônica”.
Nas conclusões Álvaro Jardel afirma que “finalizar também nos reconduz para o começo: onde está teu coração? Esta pergunta, que compôs parte do título da tese, tinha em mente a ideia de busca, passagem, movimento. Imaginar uma resposta para ela, nos fez compor as partes que constituíram este estudo: Subterrâneos, Margens, Janelas, Amurada, Entardecer e Norte e Sul. Espaços figurados de um mundo-entre constituído por personagens inquietos e buscadores do “além horizonte”, mesmo que pela mediação da concretude do ordinário da vida”.
Em breve a tese estará disponível para leitura no site do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (http://ppgl.propesp.ufpa.br/index.php/br/). Representa uma grande contribuição para a formação do conhecimento na Amazônia e para lançar a literatura de Itacoatiara para o mundo. Parabéns ao mais recém doutor pela excelente tese orientada, avaliada e aprovada por um conjunto de professores(as) altamente gabaritados(as). Gratidão a Sylvia Aranha que, no auge dos seus 90 anos continua produzindo leituras e interpretações da Amazônia de forma simples, profunda e inquietante.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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