
Do ATUAL
MANAUS – Danos ambientais são a parte mais visível do garimpo ilegal na Amazônia. Rios poluídos, áreas de floresta transformadas em crateras, dragas ocupando faixas de rios e agentes federais em permanente combate aos garimpeiros ocupam o noticiário diariamente. Outro impacto da atividade, o humano, é quase invisível, mas foi exposto pelo Atlas da Violência 2025: o assassinato de mulheres.
Elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o relatório mostra que o número de homicídios de mulheres foi maior em Estados da Amazônia. Foram 10,4 mortes por 100 mil mulheres em Roraima e 5,9 por 100 mil no Amazonas e em Rondônia. As vítimas foram mulheres de perfil étnico-racial indígena, algumas declaradas pardas.
Em Roraima, foram 31 vítimas, 12 delas são indígenas e 15 são pardas em 2023, ano dos dados copilados pelo Ipea. No Amazonas foram 3 indígenas e 104 pardas de um total de 122 vítimas. Rondônia não registrou nenhuma morte de mulher indígena dentre as 54, embora a maioria (36) seja parda. É possível que o assassinato de mulheres indígenas esteja subnotificado.
O Ipea e o Fórum da Segurança Pública associam os homicídios ao garimpo ilegal que cria as “corrutelas” (vilarejos ou assentamentos improvisados).
“Nas corrutelas, é comum a ocorrência de prostituição e exploração sexual de meninas e mulheres adultas, parte de uma dinâmica de sociabilidade que inclui o abuso de álcool e drogas. Assim, as frentes de garimpagem se mostram como espaços de sociabilização extremamente violenta, onde o gênero é um marcador fundamental. Relatos dão conta de que os homens no garimpo agem como proprietários das mulheres que trabalham nas corrutelas, e casos em que a vontade dos homens é negada muitas vezes terminam em agressões e até mesmo em assassinatos”, diz o Ipea.
Nos últimos onze anos (2013 a 2023), ocorreram 30.980 homicídios de mulheres negras na Amazônia. O número é 67,1% do total das vítimas.
As entidades afirmam que os casos de violência contra mulheres envolvem “desigualdade e racismo estrutural”. Enquanto a taxa de mortes entre mulheres não negras se manteve estável e, inclusive, em alguns estados diminuiu, entre as mulheres negras a taxa de homicídio aumentou 2,4% entre 2022 e 2023.
“As piores taxas foram encontradas em Pernambuco (7,2 por 100 mil habitantes), Roraima (6,9), Amazonas e Bahia (6,6 cada). Quinze Estados tiveram suas taxas inferiores à média nacional, sendo as menores delas registradas em São Paulo (1,7), Santa Catarina (2,4), Distrito Federal e Minas Gerais (cada um desses últimos com taxa de 3,2)”, diz a publicação.
Os três estados que apresentaram os aumentos mais acentuados foram Piauí (58,6%), Ceará (57,5%) e Amazonas (32,0%). No lado oposto, as quedas mais expressivas foram registradas no Distrito Federal (62,8%), Goiás (60,4%) e Acre (58,8%).
Para Lino João Neves, doutor em Antropologia Social e professor da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), a Amazônia há muito tempo sofre violência por extrações ilegais de madeira, minerais e por facções criminosas.
“O garimpo também é um espaço de violência e quem mais sofre são as mulheres indígenas, que são abusadas em seus territórios e as negras, que, por necessidades, vão trabalhar nesse local. É importante ressaltar que o garimpo é um espaço ilegal, onde não há a presença do estado e muitos casos não são registrados nem noticiados, há uma subnotificação”, diz o professor.
“As pessoas na Amazônia têm pouco valor e são discriminadas, não somente as mulheres, mas também os homens que são trabalhadores rurais. Há uma violência generalizada que transforma a Amazônia em terra de ninguém. Os números do Atlas podem ser maiores se consideramos também os dados de violência contra a mulher nos centros urbanos”, diz Neves.
O Atlas também destaca o risco relativo (RR), uma medida que permite comparar a probabilidade de um evento ocorrer em dois grupos diferentes. No caso da comparação das taxas de homicídio entre mulheres negras e não negras, o indicador ajuda a quantificar quantas vezes o risco de uma mulher com uma determinada característica (ser negra, neste caso) ser assassinada é maior ou menor em relação a outro grupo de referência (mulheres não negras).
“No Brasil, em 2023, o risco de uma mulher negra ser assassinada foi 1,7 vezes maior do que o risco de uma mulher não negra. Isso significa que, para cada homicídio de uma mulher não negra, ocorreram, proporcionalmente, 70% mais homicídios de mulheres negras. Em 12 estados brasileiros, o risco para estas mulheres é ainda mais grave do que o cenário Brasil. Alagoas é o caso mais preocupante, que se sobressai entre todos os outros: em 2023, mulheres negras foram 28,5 vezes mais assassinadas do que mulheres não negras. Na sequência, aparece o Piauí, onde em 2023 o risco relativo ficou no patamar de 4,2, e Rio Grande do Norte (4,0)”, diz a publicação.
Na Amazônia, o Amapá é o estado onde a desigualdade apareceu de forma mais extrema: 100% dos homicídios femininos vitimaram mulheres negras, apesar de sua representação populacional ser menor de 79,6%. E em Roraima, 50,0% dos homicídios femininos tiveram como vítimas mulheres negras, que representam 72,9% da população de mulheres.
“A violência contra mulheres tem um conjunto de camadas. A mais visível é a violência de gênero que ocorre dentro de casa, isto é, a violência doméstica. Mas existe a violência decorrente de machismo, contra mulheres de grupos minoritários, como mulheres negras e indígenas, e mulheres homossexuais. E, quando você olha para ambientes de fronteira, onde há garimpeiros, eles se sentem com autoridade para fazer o que querem com as mulheres”, diz o Luiz Nascimento, professor e doutor em História Social.
“E o machismo é tão sofisticado nesses ambientes, que sempre haverá uma justificativa para explorar e assassinar uma mulher. A perversidade machista é um elemento constitutivo desses grupos. Por exemplo, vão justificar que uma mulher foi morta porque traiu, foi morta porque não estava vestida de forma adequada, etc.”, acrescenta Luiz Nascimento.