‘Compartilhe a viagem’ é uma campanha da Cáritas Internacional, lançada pelo papa Francisco, em setembro de 2017, com o objetivo de “promover a acolhida aos migrantes e refugiados em todo o mundo”. A campanha representa um “caminho para sensibilização e solidariedade” e vem ganhando a adesão de importantes instituições nacionais e internacionais como o Serviço Pastoral dos Migrantes.
A Cáritas é um organismo da Igreja Católica que atua “nas lutas emancipatórias, a partir de processos coletivos, organizativos, promovendo o protagonismo de grupos e comunidades, bem como no fortalecimento de iniciativas em redes de articulação, fórum e ações de incidência política, animando a construção de espaços de democracia participativa, de inclusão e transformação social”.
Com a campanha ‘compartilhe a viagem’, a Cáritas, nas palavras do próprio Francisco, chama a atenção de toda a sociedade para a conjugação dos verbos acolher, compartilhar, cuidar e integrar os migrantes e refugiados que atualmente alcançam cifras inimagináveis e representam um “lixo humano produzido pelo sistema capitalista que descarta também as pessoas”, como afirmava o sociólogo Sigmund Bauman em sua obra amor líquido, 2004. Para Francisco, “nem as empresas, nem os sistemas políticos, nem os grandes líderes econômicos estão interessados em reciclar esse lixo humano”.
A campanha relembra ao mundo que a sociedade atual está marcada pelos deslocamentos humanos internos e internacionais. Diversas são as causas desses deslocamentos, mas, predominam as desigualdades sociais e as injustiças nas bases dessa tragédia humana que resulta em milhares de migrantes e refugiados. A Organização das Nações Unidas informa em seu relatório de 2017 que existe atualmente “mais de 173 milhões de refugiados deslocados por guerras e conflitos ao redor do mundo”, outros “244 milhões de migrantes internacionais”. Isso significa que para cada grupo de 113 pessoas no planeta, 1 é solicitante de refúgio e 4 são migrantes internacionais ou deslocados internos.
Por trás desses números, no entanto, existem pessoas, a grande maioria mulheres e crianças em viagem para diversas direções do planeta. Levam pouca bagagem, mas, carregam muitas esperanças e recordam a toda humanidade que a vida é uma viagem marcada por encontros e desencontros. Nessa perspectiva, a Campanha “compartilhe a viagem” nos convida a conjugar o verbo acolher no sentido de oferecer ou obter refúgio, proteção ou conforto físico, abrigar e amparar quem está em situação de vulnerabilidade. Implica em sair dos discursos vazios e assumir atitudes concretas. Envolver-se com a causa recordando-se que “todos somos migrantes numa vida passageira”, como afirmava D. João Batista Scalabrini, patrono dos migrantes e refugiados.
O segundo verbo da campanha é compartilhar e significa dar um pouco do que se tem. Às vezes esse pouco é simplesmente um sorriso, um abraço, um gesto de carinho que pode transformar vidas. Quem compartilha até pode se esquecer do gesto que fez. Mas, quem recebe, não esquece jamais. A conjugação do verbo compartilhar não tem sido muito usual no modo de vida capitalista. Representa um grande desafio para toda sociedade mais acostumada a acumular que compartilhar. Implica em romper paradigmas.
Cuidar é o terceiro verbo da campanha. De fato, os migrantes e refugiados, precisam de cuidado. Muitos são crianças e jovens afastados da escola e do convívio familiar numa fase decisiva de suas vidas. No nosso contexto brasileiro, um trecho da canção Coração de Estudante, composição de Milton Nascimento e Wagner Tiso em 1979, resume bem o sentido do verbo cuidar na perspectiva da campanha: “Já podaram seus momentos, desviaram seu destino. Seu sorriso de menino, quantas vezes se escondeu? Mas, renova-se a esperança, nova aurora a cada dia. E há que se cuidar do broto, para que a vida nos dê flor, flor e fruto. Coração de estudante, há que se cuidar da vida, há que se cuidar do mundo, tomar conta da amizade, alegria e muito sonho, espalhados no caminho. Verdes, plantas e sentimento, folhas, coração, juventude e fé”.
O quarto e último verbo é integrar os migrantes e refugiados. Para integrar é necessário, antes de tudo, atitude radical de rompimento com as amarras do preconceito, da discriminação, do racismo e de toda e qualquer forma de intolerância. Significa incorporar-se e integralizar-se juntamente com a outra pessoa. Adaptar alguém ou a si mesmo a um grupo, uma coletividade. Fazer com que a outra pessoa deixe de ser “outro” e se torne “um de nós”. Integrar representa contribuir para ajudar a outra pessoa a superar as marcas da guerra, do desprezo, do rechaço, do anonimato, da miséria e da exclusão. Integrar é estabelecer uma atitude permanente de troca de experiências, saberes, culturas, línguas, tecnologias e conhecimentos.
A conjugação dos quatro verbos da campanha ‘compartilhe a viagem’ resgata a esperança de milhares de migrantes e refugiados que batem à porta de todas as sociedades convidando mais pessoas para fazer a viagem com eles e com elas. Nos desafiam a sair de nossas zonas de conforto e assumir atitudes concretas para muito além dos nossos discursos políticos ou religiosos. Nos desafiam a assumir gestos concretos de acolhimento fraterno.
Por fim, a campanha ‘compartilhe a viagem’ nos revela que esses migrantes e refugiados tinham tudo o que precisavam para viver: a segurança em seus países, a vida estável, o conforto de seus lares, a estabilidade de seus empregos, as escolas de seus filhos e que, de uma hora para outra, perderam tudo por causa das guerras insensatas, das catástrofes ambientais ou das crises políticas e econômicas de seus países. Por isso, esses migrantes e refugiados nos revelam que a vida nos reserva grandes surpresas e que não somos totalmente donos (as) de nossos destinos cada vez mais instáveis nessa sociedade neoliberal. Informações da campanha ‘Compartilhe a viagem’ estão disponíveis na página da Cáritas.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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