Na faculdade, no início dos anos 1990, os professores batiam na tecla de que o jornalista não deve se envolver com a fonte, sob pena de contaminar a reportagem para o bem ou para o mal.
Alguns professores recomendavam, por exemplo, que o jornalista não devia chorar junto com o personagem que lhe serve de fonte, mesmo em situações extremas. Puro exagero.
Mas esse não envolvimento ia muito além da questão afetiva, sentimental; a recomendação tinha o intento de garantir às partes envolvidas na matéria o equilíbrio que garantisse ao leitor, ouvinte ou telespectador um julgamento livre, a partir de suas próprias convicções.
Para isso, o jornalista deveria e ainda deve – porque a essência do jornalismo não mudou com as mudanças tecnológicas – coletar todas as informações necessárias para apresentar o fato a partir de diversos ângulos.
Tarefa difícil se considerarmos que o jornalista comumente não está presente aos fatos, mas chega depois que eles já aconteceram, e dependem de depoimentos de terceiros; e agora, mais do que nunca, de imagens também produzidas por terceiros, que não passam de recortes da realidade.
Feito esse preâmbulo, vamos ao assunto que dá título ao este artigo. E aqui, o objetivo não é julgar o crime praticado pela detenta personagem da matéria do “Fantástico” e nem a competência do médico Drauzio Varella, mas apenas fazer algumas ponderações sobre a profissão que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu em 2009 que pode ser exercida por qualquer pessoa.
Alguns defensores de Drauzio tentam justificar a atitude dele, na reportagem que gerou polêmica nacional, com o argumento de que ele não é jornalista e o material apresentado ao “Fantástico” não se trata de matéria jornalística.
De fato, ele não é jornalista, mas embarcou nesta seara sem questionar. E vinha fazendo – não sei se ainda fará – trabalho próprio de jornalista no programa dominical da Globo, que é, sim, um programa jornalístico. Apesar de alguns quadros de entretenimento, o “Fantástico” é essencialmente jornalístico.
E as matérias apresentadas por Drauzio Varella, sem qualquer sombra de dúvida, eram matérias jornalísticas. Ele próprio, no vídeo publicado nas redes sociais em que pede desculpas à família da vítima de Suzy, afirma: “No último domingo foi revelado para o país, inclusive pra mim mesmo, o crime cometido por uma das entrevistadas da matéria que apresentei no Fantástico…”
Naquele domingo, 8, Drauzio divulgou uma nota, lida pelos apresentadores do Fantástico, em que diz: “Há mais 30 anos, frequento presídios, onde trato da saúde de detentos e detentas. Em todos os lugares em que pratico a medicina, seja no meu consultório ou nas penitenciárias, não pergunto sobre o que meus pacientes possam ter feito de errado. Sigo essa conduta para que meu julgamento pessoal não me impeça de cumprir o juramento que fiz ao me tornar médico. No meu trabalho na televisão, sigo os mesmos princípios. No caso da reportagem veiculada pelo Fantástico na semana passada (1/3), não perguntei nada a respeito dos delitos cometidos pelas entrevistadas. Sou médico, não sou juiz.”
Os apresentadores do Fantástico disseram que a emissora e o programa assinavam embaixo, apoiavam integralmente a nota.
No vídeo que divulgou no dia 10, pedindo desculpas à família, Drauzio Varella volta a dizer que não “não entrei naquela cadeia como juiz, e sim como médico”.
A questão é: e a reportagem? E a matéria jornalística? O jornalismo não pode se confundir com outra profissão, especialmente com a profissão de médico. Não foi uma consulta de Drauzio que gerou polêmica, foi uma reportagem feita por ele.
Pela legislação brasileira, o médico pode ser jornalista sem ter diploma de jornalista, mas o jornalista não pode ser médico sem diploma de médico. Não há qualquer discordância de minha parte. Não questiono aqui a decisão do STF de por fim à exigência do diploma para a profissão de jornalista.
Mas essa decisão não eliminou as regras para o exercício da profissão. Como médico, Drauzio pode optar por não perguntar os malfeitos dos pacientes. Como jornalista é dever dele perguntar. São os “por quês?”, daquela lista de cinco perguntas fundamentais para a construção de uma matéria jornalística: O que? Quem? Onde? Como? Por quê?.
Se na matéria o personagem diz que estava há oito anos sem receber visita, a pegunta seguinte é inevitável: “Por que?”
O objetivo da reportagem ou matéria, como Drauzio Varella chama, era expor um problema enfrentado pelas detentas transexuais, que estão confinadas em presídios masculinos. Isso nada tem a ver com a atividade médica. Drauzio estava ali não como médico, mas como repórter. E como tal, era dever dele entender o contexto, ir além da aparência dos fatos.
Assim como o médico investiga as causas de uma doença para melhor tratá-la, o jornalista investiga os fatos para melhor informar o público.
Drauzio Varella, no vídeo, explica o abraço que aparece no fim da reportagem e que motivou toda a polêmica em torno do caso. Depois de dizer que estava há oito anos sem receber visitas, “Ela me olhou com um olhar tão triste que me comoveu. Aí eu dei um abraço nela”, disse.
É condenável o abraço do médico na detenta? Não! É condenável o abraço de um jornalista ou uma jornalista na mesma detenta? Também não! Mas nem no caso do médico e nem no caso do jornalista o abraço precisaria fazer parte da matéria.
Aí entra um pouco do narcisismo que persegue a profissão de jornalista e que precisa ser evitado. Como médico, Drauzio não se deu conta de que atuava como jornalista, apesar de dizer que não é jornalista.
O problema é que o jornalismo, principalmente o jornalismo de televisão, se transformou em “jornalismo de emoção”, como aponta Eugênio Bucci no seu “Sobre Ética e Imprensa”.
E a Globo é uma das campeãs nesse tipo de jornalismo. Para isso, tem investido em personalidades para fazerem a tarefa que é essencialmente jornalística.
“Quando o jornalismo emociona mais do que informa, tem-se aí um problema ético, que é a negação de sua função de promover o debate de ideia no espaço público”.
Foi o que ocorreu com a matéria de Drauzio Varella ao “Fantástico”. O debate sobre o problema que originou a reportagem foi totalmente esquecido e deu lugar a um outro debate, puramente maniqueísta.
Valmir Lima é jornalista, graduado pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (Ufam), com pesquisa sobre rádios comunitárias no Amazonas. Atuou como professor em cursos de Jornalismo na Ufam e em instituições de ensino superior em Manaus. Trabalhou como repórter nos jornais A Crítica e Diário do Amazonas e como editor de opinião e política no Diário do Amazonas. Fundador do site AMAZONAS ATUAL.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.