Por Vinicius Sassine, da Folhapress
BRASÍLIA – A Casa Civil da Presidência da República se recusou, em setembro, a planejar ações de imunização da população brasileira contra a Covid-19, a identificar os riscos existentes naquele momento na produção e compra de vacinas e a atuar em conjunto com o Ministério da Saúde na elaboração de um plano.
Uma proposta só foi apresentada ao país, pela Saúde, três meses depois. O plenário do TCU (Tribunal de Contas da União) determinou, em 12 de agosto, que o ministério comandado pelo general Walter Braga Netto apresentasse em 15 dias ações planejadas e indicações de riscos para a vacinação.
Além disso, em 60 dias, deveria haver um plano com o Ministério da Saúde e secretarias estaduais de Saúde. Em 10 de setembro, a Casa Civil contestou a decisão e disse não ter “incompetência institucional” para adotar as três medidas. A política de vacinação, segundo a pasta, é exclusiva do Ministério da Saúde.
À Folha a Casa Civil afirmou em nota que não houve recusa ou omissão, que adotou “inúmeras ações interministeriais” para mitigar os efeitos da pandemia e que criou um grupo de trabalho de vacinação para coordenar “esforços” da União. O grupo foi criado no mesmo dia em que o ministério apresentou o recurso ao TCU.
A contestação, elaborada pela AGU (Advocacia-Geral da União) a partir de nota técnica da Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil, chega a afirmar que o Planalto poderia atuar caso se constatasse uma “insuficiência de determinada política pública”.
“Fosse o caso de uma política transversal, uma atividade de coordenação entre os ministérios ou caso houvesse uma avaliação ‘ex post’ da insuficiência de determinada política pública, a Casa Civil da Presidência da República poderia atuar na reformulação da política, mas não é esse o caso”, afirma o recurso encaminhado ao TCU.
No governo de Jair Bolsonaro, a Casa Civil foi designada para coordenar o comitê de crise no enfrentamento à pandemia. Em abril, Braga Netto foi alçado pelo presidente ao protagonismo no combate à Covid-19, em razão da crise detonada no Ministério da Saúde naquele mês.
O então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ganhava holofotes na crise, o que incomodou Bolsonaro. Mandetta foi demitido do cargo em 16 de abril por discordar da agenda negacionista do presidente. Com a confirmação de outro general no cargo de ministro da Saúde, Braga Netto submergiu. O general da ativa Eduardo Pazuello segue à risca a cartilha de Bolsonaro.
Pazuello só apresentou um plano nacional de vacinação em 12 de dezembro, por pressão do STF e partidos de oposição. O ministro atrasou o começo da imunização no país, que segue sem doses suficientes para vacinação em massa.
Desde o dia 25, o general é formalmente investigado em inquérito aberto pelo STF. A suspeita é de que ele cometeu crimes ao se omitir na crise do oxigênio no Amazonas.
Como coordenadora das ações na crise da pandemia, a Casa Civil não falhou apenas na apresentação de ações e identificação de riscos na vacinação dos brasileiros, segundo uma auditoria do TCU aprovada em dezembro. O tribunal listou uma série de falhas na atuação do ministério.
Os planos estratégicos elaborados para o enfrentamento à pandemia são inconsistentes, segundo o TCU, e há uma deficiência na gestão de riscos. Não há coerência entre objetivos e metas traçadas, conforme a auditoria. Falta ainda um “esforço sinérgico e coordenado” por parte da Casa Civil. Essa desorientação pode gerar um desperdício de recursos públicos, cita a auditoria.
“As inconsistências têm elevado potencial de comprometer a obtenção dos resultados que se pretendem alcançar com sua implementação, podendo gerar desperdício de esforços e de recursos a serem alocados às ações estabelecidas”, afirma o TCU em um acórdão aprovado pelos ministros em 8 de dezembro.
A Casa Civil já se recusou a incluir representantes de entidades médicas e do conselho de secretários de Saúde no comitê de crise. Também brigou, em recurso ao TCU, para manter em segredo o conteúdo das atas das reuniões do comitê de crise e do centro de coordenação de operações.
No caso da vacinação, ministros do TCU manifestaram preocupação com a inação do governo brasileiro para providenciar ações num momento em que outros países já estavam em fase avançada de testes de vacinas.
Por isso, ainda em agosto, optou-se por determinar que a Casa Civil agisse na imunização, com prazo determinado. A partir da notificação da decisão ao secretário-executivo da pasta e da elaboração de notas técnicas, a decisão do TCU foi contestada.
“Não compete à Casa Civil a elaboração de planos ou a execução da política nacional de saúde e ações governamentais para a produção e/ou aquisição de vacinas, bem como para a imunização da população em geral”, afirmou a AGU no recurso, em nome da Casa Civil.
“Apesar de o planejamento sobre esse assunto exigir indiscutivelmente a atuação de vários órgãos setoriais, isso não pode justificar ingerência em competências institucionais próprias do Ministério da Saúde”, prosseguiu. “Não compete à Casa Civil a elaboração nem a execução de política setorial. A atividade de coordenação é mais de caráter político-estratégico”.
O TCU analisou o recurso em 2 de dezembro. Os ministros viram perda de objeto em parte das determinações e aceitaram o argumento de que caberia ao Ministério da Saúde dar uma resposta concreta sobre a vacinação.
Oito dias antes, numa ação em curso no STF, o ministro Ricardo Lewandowski havia antecipado um voto em que defendeu a obrigação de o governo apresentar um plano de vacinação em 30 dias. Em 12 de dezembro, o Ministério da Saúde apresentou um plano ao STF, sem uma data de início da imunização. No fim de dezembro, a área técnica do TCU voltou a cobrar da Casa Civil que coordene ações de vacinação.
Um ofício expedido no dia 22 questionou quais ações estavam em curso desde outubro, como se dá a coordenação com o Ministério da Saúde para a imunização e qual a estratégia do governo diante da segunda onda da pandemia.
O prazo dado para uma resposta foi até 8 de janeiro. Questionada pela Folha, a Casa Civil não informou se o ofício foi respondido e qual a posição em relação às cobranças feitas pelo TCU.
“É de conhecimento público o fato de o Ministério da Saúde ser o responsável pela coordenação do Programa Nacional de Imunização, reconhecido internacionalmente por sua excelência. Esse posicionamento, em hipótese alguma, representa recusa ou ausência de participação da Casa Civil nas discussões sobre o tema”, disse o ministério, em nota.
As respostas à pandemia são feitas de maneira sistemática, disse, levando-se em conta “o ineditismo, a incerteza e a imprevisibilidade da pandemia”.
O grupo de trabalho criado para tratar de vacinação atua na coordenação da aquisição e distribuição de vacinas, diz a nota. “Esse grupo já se reuniu em diversas oportunidades, mantendo-se ativo no acompanhamento das questões relacionadas à vacinação”.
Sobre a manutenção do segredo das atas das reuniões dos comitês de crise, a Casa Civil afirmou que as reuniões têm natureza preparatória de ações e que muitas delas não chegam a ser implementadas. “A divulgação prematura poderia gerar impactos e expectativas sobre a sociedade que eventualmente poderiam ser frustradas. Uma vez efetivadas, as decisões são amplamente divulgadas”.
A Casa Civil não respondeu sobre as outras falhas apontadas pelo TCU.