Por Iolanda Ventura, da Redação
MANAUS – Tucumã, castanha do Brasil, pupunha, cupuaçu e açaí são frutos típicos do Amazonas e muito apreciados na culinária. O tucumã é ingrediente de sanduíche e acompanhamento obrigatório do pão no café da manhã para muitos consumidores. O suco de cupuaçu é presença permanente na dieta das famílias manauaras. O doce de cupuaçu com castanha é irresistível. Para consumi-los é preciso ter trabalho, mas vale a pena.
Nas feiras e mercados, vale o gosto do freguês. Os feirantes já entregam tudo de mão beijada. Ou seja, descascados e embalados. Mãos habilidosas “pelam” o tucumã com rapidez impressionante e retiram as lascas laranjas e amarelas em questão de segundos. Luvas e fitas de tecido de algodão nos dedos aliviam o manuseio da faca e garantem segurança. Até o caroço, com a carapaça preta ainda rodeado de lasquinhas laranja, dá vontade de morder.
O venezuelano Daniel Vasquez, de 30 anos, está em Manaus há três anos e há dois vende tucumã no Centro. “Descasco de dois a três sacos por dia”. O saco pesa de seis a sete quilos. “Vendemos descascado, na fruta, de todo jeito”. Mas os clientes preferem sem casca. “Porque não tem trabalho nenhum”, conta. Outros dois jovens trabalham com Daniel. Os venezuelanos dão inveja a “caboco” na destreza do preparo do tucumã.
Próximo a Daniel, Enilson Ferreira, de 45 anos, feirante há 10 anos, vende macaxeira e castanha do Brasil. Ele descasca de 20 a 30 quilos por dia. Enquanto conversa com a reportagem, tira cascas de pedaços grandes de macaxeira em segundos e coloca em uma pilha com outros pedaços prontos para vender. Ao lado, castanhas sem casca, branquinhas, podem ser mastigadas na hora.
Alguns feirantes vendem os produtos descascados e embalados com antecedência, mas Enilson aproveita a habilidade que tem com o ofício. “A gente faz na hora. Depende da demanda”.
Enilson Ferreira, 45 anos, é feirante há 10 anos (Foto: Murilo Rodrigues/ATUAL) Enilson Ferreira descasca de 20 a 30 quilos por dia (Foto: Murilo Rodrigues/ATUAL)
É comum ver vários saquinhos arrumados com castanhas nas bancadas. Alguns até mesmo moídos facilitando ainda mais o trabalho de quem for comprar. Exibidas no balcão, são um deleite para os olhos.
Sacos com castanhas e tucumãs descascados (Foto: Murilo Rodrigues/ATUAL) Castanhas descascadas na Feira da Manaus Moderna (Foto: Murilo Rodrigues/ATUAL)
Até mesmo frutas que podem ser ingeridas diretamente têm o consumo facilitado. Agostinho Reis Mendes, 66 anos, trabalha há 20 como feirante e vende goiabas com e sem casca. Ele conta que o consumidor prefere o fruto natural. Mas vendedores de lanches no Centro escolhem as descascadas. “Eu vendo para as merendeiras. Fica mais fácil de fazer suco”, disse.
O cliente também não precisa se preocupar em ter que cortar a polpa do cupuaçu dos caroços, trabalho feito com uma tesoura. Sidney da Silva, 32 anos, e feirante há 8, vende de 50 a 200 quilos de polpas da fruta por dia. “O que mais sai é maracujá, graviola e cupuaçu”, disse.
Lembranças
Essa aparente dificuldade para comer é para alguns uma boa memória afetiva. A aposentada Fatima Benarrós, 67 anos, mora na Argentina há quase três anos. Era ela quem costumava descascar tucumãs nos cafés em família.
“Meus pais tiveram sete filhos. Então, isso ocorria tanto na casa de meus pais quanto na de meus irmãos casados. Mais precisamente na cozinha, onde nos reuníamos em torno da mesa com irmãos, cunhados e sobrinhos. Naquele momento, havia muitas coisas a se fazer, além de comer o saboroso tucumã, com aquela gostosa farinha”, recordou.
Fatima relata que as conversas eram variadas e às vezes vizinhos e amigos se uniam ao grupo para debater, como ela chama, “os assuntos intermináveis”. “E haja tucumã para aguentar toda aquela gente se deliciando com ele e desfrutando daquele momento familiar e inesquecível. Naquele meio foram criados meus sobrinhos amados, que são para mim os filhos que eu não tive, por minha própria escolha”, afirmou.
Na Argentina, Fatima conta que não há tucumã para descascar ou comer. “Aqui tem cidade, rua, time de futebol com este nome gostoso: tucumã. Mas, fruta para comer, não tem. Que pena! Mas, as minhas memórias de prazer que o tucumã deixou, permanecerão para sempre. Como eu sou feliz por tê-las construído tão particularmente afetivas”, disse, saudosa.
Seleção natural
Valdely Kinupp, professor do Ifam (Instituto Federal do Amazonas) no Campus Manaus Zona Leste e autor do livro “Plantas Alimentícias Não Convencionais no Brasil”, afirma que as condições climáticas da Amazônia favorecem o surgimento de características como cascas mais resistentes.
“Os frutos florestais principalmente precisam estar protegidos contra a intempéries e as nossas condições de clima, solo, chove muito. Ou é uma chuva torrencial ou um sol escaldante, ou os dois. É um processo evolutivo, de seleção natural”, explicou.
Outra questão são os predadores. “Por exemplo, a castanha é muito nutritiva. Então, se ela ficasse exposta eventualmente seria muito predada. Assim ela é predada, mas por poucos animais como a paca, cutia, eventualmente algum outro roedor que consegue romper a casca do fruto e depois romper a casca protetora das castanhas”, exemplificou.
Os espinhos na árvore do tucumã dificultam o acesso de roedores, apesar de alguns ratos conseguirem subir e fazer ninhos na palmeira, diz Kinupp. “O tucumã, também tem gente que fala até que é uma sabedoria da natureza. Porque ele é muito nutritivo e muito calórico. Se fosse fácil de comer como é o morango, banana, a gente poderia ter problemas sérios de obesidade maiores ainda”, citou.
Trabalho para comer?
O professor ressalta que a aparente dificuldade para o consumo não deve ser um empecilho para comer os frutos. “Quando a gente fala mal brincando dos frutos amazônicos, depois quando você vai ver, vê que dá trabalho, mas não é tanto assim. Muitos dos outros também dão trabalho”, disse.
Kinupp cita o caso da pupunha. “O fato de você colocá-la na panela de pressão ou em qualquer panela com água e sal e cozinhar não vejo muito problema. É a mesma relação da batata portuguesa, inglesa ou da castanha portuguesa ou do pinhão no Sul, como inhame, cará”, citou.
Em relação à casca do tucumã, ele afirma que é preciso desenvolver tecnologias para fazer a retirada. Mas já são testadas formas de facilitar a retirada da polpa. “Descascado, deixado de molho na água à temperatura ambiente de um dia para o outro, é muito fácil de despolpar na batedeira de açaí, na despolpadeira”, disse. “E também ele com água morna, para ver se melhoraria ainda mais. Mas a extração foi praticamente 100%”.
Quanto ao cupuaçu, Kinupp afirma que o ideal é que a polpa seja retirada em máquinas despolpadeiras, que é mais fácil, e não com tesouras, forma tradicional. “Isso aí é uma maravilha para causar lesão por esforço repetitivo. Não que não possa ser feito por famílias grandes, que têm pessoas que não estão formalmente empregadas e que têm todo o tempo para trabalhar”, afirmou. Segundo ele, na máquina não há necessidade de acrescentar água à polpa.
Nutrientes
Além do sabor, comer os frutos tem vantagens como o alto teor nutricional. “O buriti é o número 1 do planeta em pró-vitamina A, em carotenoide, tanto em alfa quanto em betacaroteno. Açaí riquíssimo em antocianina, antocianidinas. A castanha é riquíssima em selênio, mas também em fósforo, potássio, rubídio, em alguns minerais que às vezes a gente nem sabe a função deles ainda para o funcionamento do corpo humano e da fisiologia do corpo de outros animais”, disse Kinupp.
Afonso Rabelo, engenheiro florestal no Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), ressalta que o consumo do açaí deve ser regular e moderado para que as propriedades possam proteger o organismo contra o envelhecimento precoce da pele e ajudar no controle da obesidade, redução do colesterol ruim, do diabete e dos excessos dos radicais livres nas células. “O consumo pode ser na forma in natura ou acompanhada com açúcar, farinha de mandioca, peixes salgados ou misturada com outros alimentos”, sugere.
Na avaliação de Kinupp, muitas espécies de frutas, frutos e legumes amazônicos poderiam estar na gastronomia do dia a dia, mas são subutilizados. “Fizemos suco no Sítio Panc [canal no YouTube] de tucumã com leite de coco, com iogurte de coco, com água, com água e limão, leite”, contou.
Afonso Rabelo explica que a polpa cozida da pupunha é considerada um alimento calórico e rico em ômega 9, vitamina A, carboidratos, fibras alimentares, proteínas e sais minerais e pode ser consumida de diferentes formas. “Além do consumo tradicional, a polpa pode ser utilizada na gastronomia para preparar refeições à base de carnes de aves, caprinos, suínos e peixes, ou para produção de bebidas fermentadas, bolos, bolas, molhos, mousses, patês, tortas, pudins, salgadinhos, sucos, vatapá sem o azeite de dendê, dentre outros”.
Rabelo também cita o cupuaçu como fruta com grande potencial de consumo. “As sementes do cupuaçu não consumidas na forma in natura, entretanto, nas indústrias de alimentos, podem ser processadas para produção chocolate em pó ou em barra, o qual é chamado de ‘cupulate’”.
Outro ponto positivo é a possibilidade de comer os frutos sem agrotóxicos. “A maçã pode não dar trabalho, mas é cultivada em monocultura. Via de regra, infelizmente com muito agrotóxico”, disse Kinupp.
Coleta
Edvaldo Correa de Oliveira, gerente do Programa Floresta em Pé da FAS (Fundação Amazônia Sustentável), explica que a maioria dos frutos nativos são de coleta extrativista. “Açaí e a bacaba, para se ter uma ideia, são produtos extrativistas. Então, poucas pessoas na comunidade plantam açaí, que é o nativo. Ele já existe há muitos anos lá, nas área de floresta mesmo”, afirmou.
De acordo com Edvaldo Oliveira, 90% do açaí é tirado da própria mata. “Geralmente esse processo de semeadura é feito pelos animais da floresta, pássaros, roedores”. Ele afirma que o mesmo ocorre com a bacaba, tucumã e buriti. “O que eles plantam realmente é a pupunha. A pupunha eles plantam para o seu consumo e vendem o excedente”, informou.
A coleta é artesanal. “O açaí, a bacaba e o buriti as pessoas costumam trepar nas árvores”, disse Edvaldo. O gerente da FAS conta que são conhecimentos passados de geração em geração. “Então é tudo feito de forma artesanal, conforme aprenderam com os avós deles, bisavós, pais”.
Evaldo Oliveira explica que os produtores familiares usam um equipamento chamado peconha, que faz uma espécie de laço ao redor da palmeira e usam para escalá-la. “Fazem da própria palha do açaí, sacola, eles atracam no pé para poder subir”.
O buriti é muito grosso e não dá para escalar. “Eles fazem as escadas. Saem pregando e fazendo escada no próprio buritizeiro para poder chegar lá em cima e cortar o cacho do buriti”, narrou Oliveira.
Os espinhos do tucumã impedem a subida até os cachos. “Então, eles cortam varas no meio do mato, foice, gancho. E aí quando o tucumã está maduro eles derrubam o cacho e coletam. A pupunha é a mesma coisa”.
Mas não são todos que são difíceis de coletar, diz o professor Kinupp. “O piquiá, por exemplo, é uma árvore gigantesca, de 30 a 40 metros de altura, mas os frutos estão no ponto de colheita quando estão no chão. Você cata no chão, assim como pequi. O cupuaçu idem”, afirmou.
Afonso Rabelo criou uma ferramenta chamada de Palmhaste para colher cachos de todas as espécies de palmeiras com até 18 metros de altura (veja o vídeo). Para que seja eficiente, foram desenvolvidos acessórios para apoiar o equipamento nas palmeiras e proporcionar a sustentação e segurança do operador.
“A ferramenta Palmhaste é constituída por 13 tubos redondos de alumínio naval, com cada unidade medindo 1,5 metros de comprimento, por 3,20 cm de diâmetro e pesando 850 gramas. O peso total da ferramenta é de 12 quilos”, explica Rabelo.
O instrumento possui três tipos de acessório: para colheitas dos cachos das palmeiras com espinhos; para cachos das palmeiras sem espinhos e com estipes [troncos] grossos; para cachos das palmeiras sem espinhos e com estipes finos. Para aparar a queda dos cachos, há uma lona plástica à prova d’água. “É importante salientar, que os materiais e acessórios que formam a ferramenta são facilmente encontrados no mercado”, informou o engenheiro florestal.
Entre as vantagens, Afonso Rabelo afirma que a Palmhaste evita o desgaste físico excessivo, ataques de animais peçonhentos, acidentes de trabalhos com os coletores que escalam as árvores e reduz desperdícios de frutos.
O criador do instrumento afirma que o uso também incentiva o extrativismo sustentável, proporciona baixos níveis de agressividade nas palmeiras e ao meio ambiente e impulsiona pesquisas com palmeiras arbóreas de interesse ecológico, econômico, nutricional e social.
O consumo desses frutos típicos da Amazônia geram, portanto, uma relação contínua entre natureza e mercado. Do extrativismo à mesa, o tucumã, pupunha, cupuaçu, castanha, açaí, buriti, graviola precisam ser “despidos” de suas proteções naturais. Com a poupa e a “carne” expostos, degustá-los é só deleite.
O leitor já experimentou um X-Caboquinho com suco de cupuaçu?
Muito bom seu site, acabei de conhecer e estou gostando muito, vou acompanha a partir de agora.