Alguns exagerados estão contando que ele saiu escondido pela janela do quarto, improvisando lençóis como corda, e depois pulou o muro. O fato é que o aposentado Orly Pimentel Ribeiro, de 84 anos, “fugiu” de casa e, sem a família saber, foi sozinho para o estádio Engenhão assistir à final da Taça Guanabara entre Flamengo e Fluminense.
Orly é torcedor tricolor e durante a semana havia comentado que queria ver aquele Fla-Flu. A família entendeu que era pela televisão e deu pouca atenção ao aviso. Orly também evitou detalhar seu ‘plano de fuga’. Se os que julgam saber mais da vida dos outros já despejam seus arbítrios sobre os mais jovens, imagine como seria o veredicto para um octogenário!
Por certo, haveria incontáveis objeções: “Olhe a sua pressão”. “É muito perigoso”. “O senhor não tem mais idade para isso”. O poeta Mário Quintana escreveu aos 78 anos: “Idades só há duas: ou se está vivo ou morto”. Orly decidiu que a sua idade era a primeira e, dessa feita, ele é quem determinaria o que era melhor para si mesmo.
Dessa vez, ele resolveu fazer o que lhe mandou seu coração, que suplicava por menos prudência e mais aventura. Largou pantufas e pijama; a ocasião pedia e ele vestiu uma de suas melhores roupas: incluindo uma estilosa camisa de polo rosa. A escapada não era apenas um ato de liberdade, mas também de paixão.
Apesar de gostar muito de futebol – a ponto pedir que o bolo de seu aniversário de 80 anos tivesse o escudo do Flu – seu Orly havia ido ao estádio apenas uma vez, num confronto em que seu time perdeu para o Vasco por 1 a 0. Com certeza, desejou ter ido ao campo em diversas ocasiões. Provavelmente, muitas das vezes, teve que fazer várias concessões para não ir. Em certos casos, talvez prioridades familiares tenham se interposto e impedido o cumprimento do desejo. Em outros, pode ter simplesmente deixado para a próxima – aquele momento ideal que nunca chega.
Fazer concessões, fazer sacrifícios, não é coisa rara na vida de brasileiros como Orly. Hoje, ele exerce uma ocupação que, pelo jeito, será cada vez mais inabitual no País: é aposentado. Se há um rombo gigantesco no sistema previdenciário nacional, não é culpa dele. Mesmo com o benefício, precisa completar a renda mensal com bicos. Assim, escolheu vender as duas coisas que melhor combatem a amargura da vida e da alma: doces e livros.
Será que a inspiração da escapulida veio de alguma obra de Mário Quintana? Como quando o poeta falou sobre o escritor Leon Tolstói: “E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…Ele fugiu de casa… Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade… Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!”.
Ou o lampejo libertário surgiu desses outros versos de Quintana: “A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira… Quando se vê, já terminou o ano… Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê, já passaram-se 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado”.
Durante a transmissão televisiva de uma partida, alguns câmeras ficam com a responsabilidade de flagrar imagens inusitadas. Por alguma razão, um deles focalizou Orly e foi assim que a família descobriu a estripulia. Foi uma mistura de preocupação, espanto e admiração que tomou conta dos filhos, 12 netos e 15 bisnetos. Os parentes que moram com ele achavam que o vovô não estava em casa porque teria aberto mão de acompanhar o clássico e saído pelas ruas do bairro de classe média-baixa, Barros Filho, para vender suas famosas paçocas e bananadas.
Dessa vez, Orly foi sozinho ao Engenhão experimentar as sensações de comunhão e pertencimento coletivo de ser torcedor em um estádio. Uma forma de guardar algo doce para si mesmo. Quem disse que é preciso escolher entre doce ou travessura?
Naquela final, o aposentado teve fôlego e disposição para vivenciar todas as emoções provocadas por seis gols – três a favor e três contra – e também uma sempre nervosa e eletrizante decisão por cobrança de pênaltis. O vovô voltou da fuga contente e risonho, com rosto de criança que fez uma descoberta feliz.
Talvez tenha entendido exatamente o que Quintana quis transmitir quando ensinou: “Quantas vezes a gente, em busca de aventura, Procede tal e qual o avozinho infeliz: Em vão, por toda parte, os óculos procura…Tendo-os na ponta do nariz!”.
Veja vídeo e foto do vovô Orly Ribeiro:
www.youtube.com/watch?v=PvCUA_iVcfE