Nesta atual conjuntura marcara por tensões relacionadas à questão migratória, apresentamos os pressupostos teóricos e metodológicos para uma importante chave de leitura e interpretação da Amazônia, tendo por base a dinâmica da mobilidade humana na região, ou seja, o contexto migratório.
Nessa perspectiva, elaboramos uma representação da Amazônia observando as importantes mudanças pelas quais a região tem passado a partir dos seus mais diversos fluxos migratórios. Aliás, não há como falar da Amazônia sem considerar as migrações.
A dinâmica migratória também representa uma importante chave representativa e interpretativa da Amazônia e os migrantes contribuem com a formação do mosaico da sociodiversidade desta região de ‘mil rostos’ em uma miscelânea de culturas, experiências e subjetividades trazidas e levadas nos itinerários migratórios.
Observando tais mudanças e analisando as chegadas e as saídas de milhares de pessoas, em um contexto caracterizado por intensa mobilidade e permanentes deslocamentos humanos, optamos por dar maior ênfase aos sujeitos ou pessoas em situação de migração, recolhendo deles e delas as pistas para analisar essa sociedade, marcada por profundas mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais.
Esse estudo possibilitou-nos identificar os principais elementos propulsores da mobilidade humana na Amazônia, resultando em uma análise mais aguçada da temática e situando tanto o panorama dos movimentos de migração interna como os processos que concorrem para a migração internacional. Além disso, chegamos à conclusão de que se faz necessário buscar novos elementos para se reelaborar os conceitos de migração na Amazônia, levando em consideração a mobilidade dos povos indígenas, migrantes indocumentados ou irregulares, refugiados, ribeirinhos e outras categorias específicas da região, decorrentes de novos acontecimentos, como a feminização da migração e o tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual comercial.
Adotamos uma metodologia visando a análise da realidade com um olhar crítico, de modo a ‘desnaturalizar’ os fatos sociais mediante as técnicas de pesquisas das ciências sociais pautadas no rigor metodológico e em uma prática científica extremamente cuidadosa e criteriosa.
Nos últimos anos visitamos e acompanhamos várias frentes migratórias nos arredores da Amazônia. No Estado do Acre, centramos nossa atenção nas fronteiras por onde entravam e continuam entrando significativos fluxos de migrantes haitianos nos municípios de Assis Brasil e Brasiléia. Passando por Rio Branco, identificamos algumas tentativas de elaboração de políticas migratórias ainda pautadas na restrição, no controle das fronteiras e na assistência emergencial como a criação, por iniciativa do próprio governo do Estado, de um bairro só para haitianos, remetendo-nos ao mito das cités-guetos, estudados por Loïc J.D. Wacquant, em uma obra intitulada “as duas faces do gueto”, publicado em São Paulo, pela editora Boitempo, em 2008. Referindo-se à segregação dos migrantes em guetos nos subúrbios das grandes cidades, Wacquant afirma que “são espaços marcados pelo preconceito, violência, segregação e discriminação que resulta numa mecânica de exclusão social”.
Na cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, também observamos a situação dos haitianos e bolivianos confinados a determinados espaços da cidade, em áreas de risco, de alagação e em condições precárias de habitação. Também essa realidade remete-nos novamente aos estudos de Wacquant (2008).
No Estado de Roraima observamos a intensa diáspora venezuelana em dois grandes blocos de mobilidade: uma de povos indígenas deslocados de seus pelos grandes projetos de exploração das riquezas minerais em seus territórios na região do Delta Orinoco; e a mobilidade de milhares de migrantes impactados pela crise econômica e política do país.
Estes novos contextos migratórios possibilitou-nos a realização de uma observação crítica dos mecanismos de segregação dissimulados nas principais cidades de concentração de chegada ou passagem dos migrantes. Isso nos permitiu identificar a postura do Estado, o papel da sociedade e das instituições dedicadas ao atendimento emergencial dos migrantes em situação mais vulnerável.
Nos estudos sobre a origem e causa das migrações, identificamos que da mesma forma que o Estado, e não somente ele, pode lançar mão da violência para expulsar e forçar deslocamentos migratórios, também pode utilizá-la para bloqueá-los e impedi-los de ocorrer. Esse fator torna-se evidente na observação das experiências vividas pelos agrupamentos sociais que se submeteram ao confinamento em campos de refugiados bem como das que se viram impedidas, pelas barreiras, de passar pelas fronteiras monitoradas pela vigilância dos departamentos de imigração das grandes potências internacionais.
Isso ocorre principalmente porque atualmente o mundo polariza-se entre regiões cada vez mais ricas e outras cada dia mais pobres. Por um lado, os organismos internacionais garantem condições para a livre circulação do capital e das mercadorias, mas não fazem o mesmo no que tange aos migrantes. Para estes, erguem-se cada vez mais muros físicos ou políticos, ou seja, implantam-se políticas cada vez mais restritivas e xenofóbicas, que obstruem a circulação dos imigrantes, os quais são considerados necessários, mas indesejados, pelos países que os recebem.
A partir dessa abordagem, evidencia-se a complexidade que envolve uma análise da situação da mobilidade humana especialmente a dos deslocamentos compulsórios na Amazônia. O ato de migrar abarca uma série de dificuldades nas escalas econômica, política, cultural, religiosa, climática, situados tanto nos processos de deslocamento quanto nas ações voltadas para a nova alocação do indivíduo ou de uma coletividade.
No panorama das migrações internacionais na Amazônia, nota-se que as tensões vividas em torno da mobilidade humana revelam o paradoxo do sistema econômico globalizado: ao mesmo tempo em que propugna a livre circulação do capital, o neoliberalismo cria mecanismos de restrição à movimentação das pessoas. Ou seja, o capital e as mercadorias podem circular à vontade, para auferir os ganhos proporcionados pela especulação, favorecida pela extrema dependência financeira imposta aos países empobrecidos, escravos do endividamento externo.
Os estudos da migração transfronteiriça contribuíram para ampliar a visão do espaço amazônico para além das fronteiras brasileiras e relacioná-los com a ideia de simultaneidade de tempos e espaços. As fronteiras dão lugar às transformações simultâneas do espaço regional. A Amazônia é uma fronteira vista como o lugar onde as diferenças se evidenciam e tornam-se geradoras de conflitos culturais e sociais. Por outro lado, é na fronteira que as distâncias culturais se estreitam e as diferenças passam por um processo de reelaboração. Então, a fronteira passa a ser também o divisor de águas determinante para a construção de novas relações que extrapolam as próprias linhas geopolíticas e estendem-se por outras regiões a partir do momento em que os migrantes adentram os países limítrofes.
Para os migrantes, as fronteiras geopolíticas e os limites geográficos são abstratos e complexos e estão relacionados à construção da ideia de território ou territorialidade que muitas vezes transcende as fronteiras geopolíticas institucionalizadas.
Concluímos que é inegável a contribuição dos migrantes para o desenvolvimento da Amazônia em todos os sentidos. O Perfil Migratório da região identifica fatos novos e antigos de deslocamentos de populações que fazem circular novas bases de produção, transferências de tecnologias e conhecimentos enriquecendo as relações culturais e sociais. Nesse sentido, é inegável a contribuição dos migrantes que, longe de configurar-se como um problema social, como vêm sendo tratados pelas instituições estaduais, representam avanços importantes para a região. Insistimos na prerrogativa das migrações como chave de leitura e entendimento da Amazônia, como fato positivo e de grande contribuição para interpretação dessa imensa região.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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