SÃO PAULO – “Eu mato o tempo fingindo fazer versos filosóficos / Cheio de dúvidas que povoam minha alma / Mas sigo o caminho tortuoso dos que vestem calma / Ou se fantasiam de atormentados fantasmas / E escrevem versos que não dizem nada /A não ser o que já foi dito ou reeditado / Um passatempo jogo bobo de dados / Ou um velho baralho de cartas marcadas.” Os “versos filosóficos” são de O Poeta da Madrugada, o primeiro livro de poesias de Alceu Valença.
No ano em que completa quatro décadas redondas de carreira discográfica solo (iniciada com Molhado de Suor), o compositor pernambucano estende sua atuação nas artes para além da música. O livro, que sai em janeiro de 2015 em Portugal – pela Chiado, a maior editora do mundo em língua portuguesa -, sucede a outra experiência nova: a concepção, roteirização e direção do filme A Luneta do Tempo, que levou 15 anos para ser realizado e com o qual Alceu saiu premiado do Festival de Gramado, no mês passado (ele ganhou pela trilha musical e Moacyr Gramacho, pela direção de arte do filme).
Reflexões sobre o tempo, que Alceu acredita permearem sua poética “desde os 16 anos, quando publicava textos no Jornal do Commercio, do Recife”, também são suscitadas por Valencianas, o CD de sucessos com arranjos orquestrais e instrumentos nordestinos que ele registrou com a Orquestra Ouro Preto, e que está lançando com shows pelo País. E por Amigo da Arte, trabalho com cores carnavalescas que revive sua juventude pernambucana, e que saiu em janeiro, com gravações de frevos, maracatus e cirandas feitas entre 2000 e 2001. “O tempo é uma das tônicas da minha poética. Não tem fim, não tem começo, mesmo pensado ao avesso, não se pode mensurar”, ele diz, citando a canção Embolada do Tempo, em entrevista no apartamento em que vive, no Leblon, há quase 30 anos. O desejo de fazer A Luneta do Tempo chegou quando seu pai morreu, em 1999.
Alceu voltou ao seu berço, na agreste São Bento do Una, para o enterro, e foi tomado pela cultura ancestral local: violeiros, cordelistas, vaqueiros, reminiscências do cangaço. Escreveu um breve argumento e, ao mostrá-lo casualmente ao diretor e fotógrafo Walter Carvalho, ouviu: “Isso é cinema!”. Mesmo viajando muito com seus shows – tem montados oito tipos de apresentação, uma para cada tipo de ocasião ou contratante -, Alceu comprou livros e estudou cinema sozinho. A trama nasce do amor de Lampião e Maria Bonita, personagens de Irandhir Santos e Hermila Guedes, e segue com conflitos familiares que se espraiam por gerações, vividos em meio a cantadores, artistas circenses e cangaceiros, e ao som de músicas de Alceu.
Ele não se vê dirigindo de novo. “Tudo meu tem que me comover profundamente. Sou um artista, não um cara do entretenimento”, define-se Alceu Valença, cujo troféu Kikito fica na sala de estar – não por vaidade. “Yanê (sua mulher) fala que eu não comemoro nada. Sou muito mais feliz pela realização do que pelo resultado.” O filme estará no Festival Internacional de Cinema do Rio, no fim deste mês, na mostra Hors Concours, Os 40 anos do primeiro LP solo (em 1972, ano em que veio do Recife para o Rio, já havia lançado Quadrafônico, com Geraldo Azevedo e arranjos de Rogério Duprat) passaram em branco. Mas Valencianas não deixa de ser um marco dessa trajetória. Os versos “de éter”, “poemas pescado” de sucessos como Tropicana, Anunciação, La Belle de Jour, Coração Bobo e Sete Desejos ganharam roupa nova e refinada, num equilíbrio entre “a austeridade erudita e a liberdade popular”, como escreveu o maestro da Orquestra Ouro Preto, Rodrigo Toffolo.
Como aquelas que lhe renderam centenas de milhares de discos vendidos nos anos 1980 e 1990, letras e músicas germinam o tempo todo, da leitura de jornais ou de momentos de ócio em viagens. Basta breve concentração. “Meu tesão é fazer para mim mesmo. Guardo tudo no iPhone”, conta Alceu, assobiando nova e doce melodia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
(da Agência Estado)