Relacionar o conceito de liberdade com o desempenho cotidiano do indivíduo no seu contexto social – no real midiático em convulsão – pode ser um exercício metafísico divertido. Quem sabe assim entender o conflito de opiniões que desfilam nos palanques virtuais desta Polis à deriva, sem clareza do rumo a tomar. Precisaremos de persistente exercício da razão para satisfatoriamente interpretar, e providencialmente, atuar na geleia geral postada, do mesmo jeito, nas telinhas de cada um. É interessante adentrar alguns grupos que reivindicam algo, e notar, além da homogeneidade do pensamento, a proibição de contrariar o dogma da ocasião. Esse padrão de conduta frequentemente permite especular que ninguém ali está pensando nem cogita o exercício livre e crítico dessa atividade. O pensamento crítico, para se fazer valer esclarecedor, ou transformador, precisa ser ácido. Em Química, a acidez se refere a um composto capaz de transferir Íons, ou seja, desarticular ou corroer o ambiente. Pensar criticamente é desconstruir o que está dado. Não necessariamente instalar o caos onde alguém queira inventar artificialmente o logos, para lembrar o dualismo grego original. Criticar é acreditar que a verdade venha à luz. Os dialéticos, aqueles que raciocinam no terreno do conflito e o adotam como critério, sabem bem disso, e por isso se tornam desconcertantes e interessantes em relação aos que adotam o pensamento linear.
Com a reinvenção do indivíduo no Renascimento, a responsabilidade do sujeito sobre si mesmo desembarcou em duas correntes filosóficas ocidentais: a leitura existencialista, que considera o contexto social e histórico como formador do sujeito, ao mesmo tempo em que atribui a ele o poder e a responsabilidade fatal de fazer escolhas o tempo todo. A outra leitura é assumida pelos autores liberais, que também coloca a responsabilidade no sujeito de fazer escolhas e assim produzir seu próprio destino. Este modo de pensar e explicar o sujeito costuma deixar de lado o contexto social e histórico que literalmente constituem os sujeitos. Os liberais trabalham com uma concepção de sujeito atomizado. Com predicados inerentes a sua natureza. Um sujeito que não enxerga que suas necessidades não se originam nele mesmo, mas sobretudo na lógica de consumo do sistema econômico que eles mesmos sustentam ideologicamente. Esse estranho sujeito – presente em mim e em você – se tornou presa fácil para se tornar massa de manobra líquida, que busca satisfazer as várias demandas que a ideologia do consumo impõe sobre ele – demandas que muitas vezes são inalcançáveis – fazendo com que sua ideologia seja um ciclo vicioso e anestesiante de produzir, consumir e enriquecer. E nada para além desse horizonte.
Assim formamos sujeitos sem a capacidade de treinar a empatia, enquanto ensinamos nossas crianças, desde cedo, nas escolas, a lógica da competição, em detrimento da cooperação. Pessoas egocentradas que só se importam com determinado problema quando o imediatismo de seu ego está em jogo. O outro é avaliado no estreito critério da ética utilitária. Isso explica porque os atentados de Paris recentemente foram muito mais impressionantes e causadores de espanto do que a barbárie diária da fome e da doença que dizima populações em lugares como a África.
Paradoxalmente, a sociedade de consumo conseguiu exaurir a subjetividade das pessoas, impondo que elas busquem sua identidade naquilo que consomem e exibem. E que elas lutem, com unhas e dentes e passeatas virtuais, pelo seu direito de fazer isso, ou seja, de defender até o fim seu direito de opressão sistemática, a ética da indolência filosófica ou a estética da exclusão. Toda essa engenharia, sugestivamente libertária, amanhece, pois, metafisicamente insustentável e politicamente deplorável.
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