O eleitor está angustiado diante da urna eletrônica. Os dois candidatos são péssimos e ele não sabe distinguir quem é o menos pior, mas também não quer votar nulo. Subitamente, toca o despertador…ele abre os olhos. Era um pesadelo.
O herói está cercado pelo exército inimigo. Ele conta somente com sua espada para adiar a hora da sua morte. De repente, aparece um saci atirando granadas e entrega uma metralhadora para o mocinho.
A gentil dama foi capturada pela tribo canibal. Antes de ela ser atirada no panelão de fogo ardente, surge o curupira fazendo malabarismos com uma bola de futebol. A dama aproveita a distração de todos para escapar.
A resolução improvável e inesperada de situações desesperadoras como essas era um artifício sacado pelos dramaturgos gregos e que ficou conhecido como “deus ex machina”: deus fora da máquina ou deus surgindo da máquina.
Normalmente, ocorria nos minutos finais da peça quando as personagens estavam numa enrascada aparentando ser inescapável. Logo, um ator suspenso por cordas aparecia na parte superior do palco. Ele interpretava uma divindade vinda do Olimpo que descia à Terra para, com seus poderes e sabedoria, solucionar todos os problemas e explicar todos os furos da trama.
O poeta Eurípedes (480 a.C. – 406 a.C.) ganhou a má fama de abusar do recurso. No livro “Tragédia Grega”, o crítico H.D.F. Kitto diz que Eurípedes utilizava o “deus ex machina” para finalizar as peças que não queria ou era incapaz de concluir.
Alguns especialistas garantem ser injusta essa péssima reputação de Eurípedes. Segundo eles, das dez peças que chegaram até nós, em que o dramaturgo utilizou o deus ex machina, só em duas — Orestes e Hipólito — o deus intervém para resolver uma situação insolúvel. Nas oito tragédias restantes de Eurípedes, a intervenção divina ocorre quando todos os problemas já se encontram efetivamente resolvidos, ou seja, após a conclusão real da peça.
A questão do ex machina não é o protagonista ser salvo de um apuro terrível, mas sim a forma forçada e artificial como isso é feito, tipo um saci aparecendo do nada com granadas para resgatar o mocinho. Assim, o ex machina virou sinônimo de inabilidade do roteirista e de falha grave no roteiro.
O aparecimento de um fator externo que chega para salvar a situação é péssimo na dramaturgia, mas poderia ser bem-vindo em outras situações. No futebol, por exemplo, a tentativa da vez é o uso do vídeo ser uma espécie de deus ex machina para dirimir dúvidas e evitar erros de arbitragem.
Mesmo que utilizada para impedir equívocos, a não regulamentação do auxílio externo do vídeo no futebol ainda gera confusão. Na Copa do Brasil deste ano, no confronto entre Flamengo e Santos, o árbitro Leandro Vuaden marcou, equivocadamente, um pênalti para os santistas. Algum tempo depois, voltou atrás depois de ser informado pelo quarto árbitro, Flávio Rodrigues, de que o zagueiro do Fla não havia cometido falta no atacante do Peixe.
A convicção do árbitro assistente gerou desconfiança do time paulista, que achou ter flagrado um caso de ex machina. Após a eliminação, o Santos enviou um ofício à CBF acusando o repórter Eric Faria, da TV Globo, de ter avisado a arbitragem do erro para ajudar o time queridinho da emissora. O alvinegro praiano também pediu a anulação da partida e exigiu que o jornalista fosse proibido de trabalhar como repórter de campo. Fanáticos apoiadores do Peixe chegaram a ameaçar de morte o trabalhador.
Dias depois, o Santos se pronunciou publicamente afirmando ter reconhecido que não houve interferência externa nenhuma. Era tudo furo no script de vítima de conspiração. Não houve, porém, pedido de desculpas oficiais ao repórter.
Um significado atual interessante de deus ex machina é que a expressão também pode descrever uma pessoa ou uma coisa que de repente aparece e resolve um problema aparentemente insolúvel.
Muitos brasileiros parecem sempre esperar justamente por esse tipo de deus ex machina: alguém que desça de onde estiver para resolver as crises e salvar a nação dos problemas. Vários deles, criados e agravados por “salvadores” anteriores.
Como cada povo é responsável pelo seu próprio script, é preciso atenção ao que significa se pôr na posição de carecer da intervenção do deus ex machina: inabilidade do roteirista e falha grave no roteiro.
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