“Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa, e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”. O verso do poeta traduz a indignação geral do brasileiro ante a fragilização crescente e desconcertante das instituições ligadas à segurança, à justiça e à educação. Nesse fim de semana, no município de Santo Antônio de Borba, um dos mais destacados pela religiosidade de sua população, numeroso grupo de homens e mulheres invadiu a delegacia da cidade, agrediu os policiais e linchou, antes de queimar ainda vivo, um jovem de dezoito anos acusado de estupro seguido de feminicídio de uma adolescente de quatorze anos. No mesmo dia, em Guarulhos, crime semelhante foi praticado por populares ao lincharem um rapaz que assassinou o próprio pai e uma irmã. Nesta terça-feira, dia 11, um jovem foi detido pela população e linchado após a prática de um assalto no Centro Histórico de Manaus. Crimes bárbaros, filmados e banalizados pelas redes sociais.
Em todos os casos citados, observa-se a omissão do Estado em cumprir seu papel, ente responsável por manter a ordem, punir e garantir a segurança do cumprimento da pena, a par da demora da presença policial, da lentidão da justiça, da impunidade, a da liberação de criminosos aquinhoados.
A insegurança em que se vive faz nossa gente regredir à época da barbárie, “olho por olho dente por dente”. Vive-se em estado de tensão permanente, com uma sensação de violência eterna. Perdemos antigos hábitos de ler livros em praças e transportes coletivos. Ir à padaria, ao mercado, ao salão de beleza…todos têm uma história de medo para contar, algumas muito trágicas. A par disso, a passividade foi deixada de lado, mesmo que tenha sido para atuar de forma violenta, já que não se consegue mais viver como mero espectador.
O linchamento tem sido objeto histórico de um dos mais respeitados sociólogos do Brasil, José de Souza Martins, herdeiro da tradição sociológica de Florestan Fernandes. Sobre o assunto, o autor publicou, em 2015, o livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil, resultado de ampla pesquisa que abrange o período de 1945 a 1998”. Foi contabilizado mais de um milhão de brasileiros como atores do ato, ou tentativa, de linchamento. De acordo com casos coletados, o autor estima que, no mencionado espaço de tempo, 2.579 pessoas foram vítimas de linchamentos, das quais 44,6% foram salvas, e 47,3% feridas ou mortas. Capturadas, as vítimas foram espancadas, atacadas a pauladas e pedradas, tiveram os olhos extirpados, foram castradas e muitas foram incineradas ainda com vida. Apenas 8,1% das vítimas conseguiram escapar por seus próprios meios. São dados estarrecedores e recordes nos anais do Planeta.
Ao explicar a forma e a função do justiçamento popular no Brasil, Martins encontra evidências da força do inconsciente coletivo e do que ele chama de “estruturas sociais profundas”, que permanecem latentes nas referências atuais de condutas sociais e em comportamentos individuais. Essas estruturas sociais não foram superadas pela história, de forma que permanecem como referências subterrâneas das ações sociais de hoje e tornam-se visíveis quando a sociedade está ameaçada e sem referências para reconstituir-se. Aí está o ponto.
Os ritos processais nem sempre são compreendidos e a espera ou a ausência da justiça criam, indubitavelmente, “justiceiros”. Isso precisa ser enfrentado, a começar, pela eficácia da gestão educacional.
Não dá para reprimir a gota d’água. Assim, é necessário educar o cidadão para preveni-la, diluir o ódio pela recuperação dos papéis institucionais, num ambiente livre de corrupção, transparente, construtivo e educacionalmente consciente.
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