A Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si – Sobre o cuidado da casa comum (2015), retoma as inquietações expostas pelos melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponíveis, buscando alertar a humanidade sobre o que estamos fazendo com o nosso planeta.
A Laudato Si faz referência ao canto de louvor de São Francisco de Assis (1181 – 1226), que compara a nossa casa ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”.
Baseando-se em estudos reconhecidos, a Laudato Si afirma que a irmã terra clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Os seres humanos crescem pensando que são proprietários e dominadores da mãe terra, sentindo-se autorizados a saqueá-la violentamente, provocando doenças no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Numa referência à fragilidade do planeta, a Laudato Si sugere que entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que está “gemendo como que em dores de parto” (Rm 8,22).
O documento expressa uma forte consciência das dificuldades de respostas apropriadas a estes desafios, manifestas não somente na resistência dos poderosos, mas também no desinteresse dos outros. Trata-se de atitudes que vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas.
Nestas circunstâncias, flui na Encíclica, um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental que vivemos e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós.
Considerando a estreita interligação entre todas as coisas no mundo, a Carta destaca de forma especial a questão da água. Este aspecto é de fundamental importância, pois a questão da água diz respeito não somente à superexploração dos recursos naturais pelas populações mais ricas do planeta, mas também toca no problema da pobreza, que impede que expressivos contingentes populacionais acessem a água potável limpa.
Entre os pobres, são frequentes as doenças relacionadas com a água, incluído as causadas por micro-organismos e substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água inadequadas, constituem um fator significativo de sofrimento e mortalidade infantil. Grandes cidades que dependem de importantes reservas hídricas sofrem períodos de carência do recurso, que, nos momentos críticos, nem sempre se administra com uma gestão adequada e com imparcialidade.
Enquanto a qualidade da água piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado, dificultando ainda mais o acesso dos mais pobres. Na realidade, o acesse á água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.
A transformação da água em mercadoria e todas as iniciativas que dificultam o acesso das classes socialmente mais vulneráveis são medidas que agravam a histórica dívida social para com os pobres que são privados da água potável, reforçando a negação do direito à vida radicado na dignidade inalienável do ser humano. Esta dívida pode ser parcialmente saldada com maiores contribuições econômicas para prover de água limpa e saneamento as populações mais pobres.
Diante da valoração econômica da água e sua escassez em algumas partes do mundo, é previsível a ocorrência de uma intensa corrida das grandes empresas de saneamento para controlar os estoques hídricos do planeta. Isto levará ao agravamento da crise socioambiental, uma vez que as águas estarão submetidas aos interesses empresariais e financeiros voltados para a produção de lucros e para a ampliação de poderes políticos que influenciarão negativamente as gestões públicas dos Estados e territorialidades.
No Brasil, é notória a influência destas grandes empresas privadas (Águas do Brasil, Solvi e Aegea Saneamento e Participações) sobre o poder legislativo para modificar o Marco Regulatório do Saneamento Básico, buscando promover a privatização dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário nos municípios, principalmente naqueles localizados nas áreas urbanas com grande potencial lucrativo. Nesta perspectiva, as populações de menor poder aquisitivo serão excluídas destes serviços essenciais ou receberão serviços precários e inadequados, vivendo uma cidadania de terceira categoria.
Manaus, cujos serviços de água e esgoto estão privatizados desde o ano 2000, tem experimentado ao longo do período da concessão privada, o abandono das populações que residem nas periferias, favelas e palafitas. Estas populações não têm acesso aos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário ou são precariamente servidas pelas concessionárias, sendo obrigadas a pagar tarifas excessivamente elevadas, inapropriadas para as famílias de baixo poder econômico.
Além da precariedade dos serviços divulgada anualmente pelos órgãos de atendimento aos consumidores, as concessionárias que vêm gerindo os serviços de água e esgoto em Manaus (atual Águas de Manaus) têm se mostrado indiferentes à poluição dos rios e igarapés, que recebem a maioria dos esgotos produzidos na cidade. A municipalidade e órgãos de controle contribuem com esta situação ao legitimarem uma privatização socialmente injusta e ambientalmente insustentável.
Diante desta realidade, é possível notar que muitas medidas no campo socioambiental não estão orientadas para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração de mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade.
A Lautado Si também acena com um lampejo de esperança, constatando que depois de um tempo de confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está entrando em uma etapa de maior conscientização. É visível uma crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e se amplia uma sincera e sentida preocupação pelo que está acontecendo com o nosso planeta. Neste sentido, aparece no documento uma espacial gratidão àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas consequências de degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo.
A Encíclica Laudato Si busca esclarecer a fé cristã, salientando a necessidade de sua atualização e reconhecendo que ela traz novas motivações e exigências perante o mundo de que fazemos parte, sendo necessário considerar o que está acontecendo com nossa casa comum, sem esconder debaixo do tapete as questões que nos causam inquietação. O seu objetivo não é recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece com o mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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