O Estado do Amapá sofre uma crise energética que tem deixado todo o país em alerta. No dia 03 de novembro houve um colapso sem precedente no sistema de distribuição de energia elétrica, deixando 90% do Estado no escuro e imprimindo graves consequências em outros setores da sociedade, como o sistema bancário, o comercial, o abastecimento de água, a alimentação e a segurança. A situação foi causada por um incêndio na principal subestação de energia do Estado, que danificou os dois grandes transformadores em operação da instalação.
Os serviços são realizados pela multinacional espanhola Gemini Energy, que atua no local por meio da subsidiária Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE). A subestação foi projetada para operar com três transformadores, dos quais um reserva para garantir a segurança do sistema. O transformador reserva está em manutenção desde dezembro de 2019, sendo que somente em setembro a Gemini Energy contratou o fabricante para fazer o reparo do equipamento.
Diante desta situação, a Eletronorte, Companhia de Eletricidade do Estado, se mobilizou para acionar gestadores termelétricos – movidos à combustível – até que os transformadores da subestação voltem a funcionar normalmente. A ineficiência da empresa privada levou a estatal Eletronorte prestar apoio ao sistema, retomando o fornecimento de energia em algumas cidades até que os serviços voltem a sua normalidade. Além disso, recursos do Ministério de Desenvolvimento Regional estão sendo usados para alugar os geradores, visando normalizar a situação.
A subestação que pegou fogo é operada pela Gemini Energy, empresa administrada por fundos de investimentos formada a partir de ativos da multinacional espanhola Isolux no Brasil, que está em recuperação judicial. O histórico de problemas da Isolux inclui atrasos em obras de linhas de transmissão de eletricidade, que levaram a cassação de contratos de concessão dessas linhas.
A empresa também abandonou as obras de duplicação da BR-381, em Minas Gerais, em 2015. Neste mesmo período o governo de São Paulo rescindiu o contrato em que a Isolux deveria construir duas das quatro estações da Linha 4 do metrô da capital. Isso ocorreu porque a empresa abandonou a obra, descumpriu normas de qualidade e segurança, além de não pagar as subcontratadas.
Este colapso coloca mais uma vez em questão o discurso da eficiência geralmente utilizado para privatizar os serviços públicos. Novamente é possível averiguar que os interesses do mercado não contemplam o bem-estar da população, mas visam somente gerar lucros para os empresários e financistas ansiosos por se apropriarem dos bens públicos para se enriquecerem às custas do sofrimento dos cidadãos. E fazem tudo isso com o apoio do Estado, que se encontra cada mais vendido aos grandes protagonistas do mercado.
Esta conclusão é reforçada pela experiência de Manaus. Privatizados em 2000, pelo então governador Amazonino Mendes, atualmente os sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Manaus ocupam os piores lugares no ranking de desempenho destes serviços, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS 2018). Realizada por meio de um processo conturbado e cheio de irregularidades, a privatização da água e do esgoto em Manaus possui um longo histórico de precariedade evidenciado pela Câmara dos Vereadores, pelo Ministério Público, pelo Tribunal de Justiça do Amazonas e pelos órgãos de Defesa do Consumidor.
A Prefeitura de Manaus, ao invés de defender a população, se alia a iniciativa privada, visando também se beneficiar com os ganhos da empresa Aegea Saneamento (controladora da concessionária Águas de Manaus) às custas do sofrimento dos manauaras. Esta empresa é favorecida não somente pela omissão dos órgãos públicos, mas também pelos recursos públicos que são investidos no negócio, já se aproximando de um bilhão de reais ao longo da concessão. Enquanto isso, as comunidades das periferias sobrevivem sem água e tratamento de esgoto e o meio ambiente é criminosamente destruído.
No Amapá e no Amazonas, a privatização dos serviços públicos demonstra o quanto o capital avança no seu projeto de exploração numa completa indiferença ao sofrimento dos povos amazônicos. Sem ter quem os defenda diante da agressividade do capital, aos povos da Amazônia só restam a indignação, a revolta e a organização. Os levantes populares dos países vizinhos talvez possam lançar luzes sobre os próximos acontecimentos nacionais. Até a paciência tem o seu limite!
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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