A Dinamarca foi o primeiro país a proibir a existência de escravos (1792), o Haiti foi a primeira nação da América Latina a libertar os seus escravos (1794) e o Brasil foi o último país latino-americano a tornar livres os escravos no seu território. O 13 de Maio de 1888, que celebrou a assinatura da Lei áurea, além de chegar atrasado, não trouxe mudanças significativas na vida dos escravos. A Lei não mexeu com as estruturas de poder, nem tocou nos privilégios das elites.
Embora a entrada de escravos negros na Amazônia remonte ao século XVII, foi a Companhia de Comércio e Navegação do Gão-Pará e Maranhão que iniciou a introdução maciça dos mesmos no território amazônico. No projeto colonizador de Marquês de Pombal (1699 – 1782), que visava consolidar o domínio português na região através da produção extrativista, os escravos africanos garantiram a mão-de-obra nas lavouras e em outras atividades, promovendo o desenvolvimento das províncias do norte brasileiro.
Segundo Laurentino Gomes, o Brasil, sozinho, recebeu 4,9 milhões de cativos, o equivalente a 47% do total desembarcado em todo o continente americano entre 1500 e 1850. Os últimos grandes destinos do tráfico negreiro no Brasil, Maranhão, Pará e outras regiões do estuário do rio Amazonas receberam cerca de 142 mil cativos. Eles vinham principalmente da Guiné-Bissau. Atualmente, o IBGE (2018) registra que pretos e pardos já ultrapassam 54% da população brasileira.
A Lei Áurea, que retirou os negros das favelas e os lançou à sua própria sorte, sem nenhum apoio das instituições existentes, não somente os colocou em situações de privação, mas também estabeleceu as bases de uma sociedade desigual, que divide os seus membros entre cidadãos de primeira e segunda categoria. A sociedade que resplandecia para a modernidade possuía uma população formalmente livre, mas a sua maioria amargava (a ainda amarga) condições precárias de vida, habitando nos limites da existência.
Enquanto isso, as elites minoritárias mantêm os seus privilégios operando um capitalismo selvagem, cujas regras favorecem aos mais abastados, que justificam o seu status quo através de uma falsa meritocracia. Alimentam constantemente o ódio aos mais pobres, que têm no povo negro uma das suas principais representações. De acordo com o IBGE (2018), no Brasil, entre os 10% mais pobres, 75,2% são negros e 23,7% são brancos.
O atual governo de Jair Bolsonaro tem contribuído para que esta situação se aprofunde, enfraquecendo instituições que representam conquistas históricas, por exemplo, a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que perdeu a sua autonomia e, agora, está submetida ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Além disso, os programas e ações direcionadas a estas questões passaram por cortes e significativas modificações nos últimos mandatos. Somente pera ilustrar, em 2019, houve queda de 60% do valor empenhado para o Programa “Promoção da Igualdade Social e Superação do Racismo” de governo Federal. Em comparação com o período anterior, foram R$ 12,5 milhões a menos.
A situação de desigualdade que afronta os negros é evidenciada na atual crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. O Ministério da Saúde tem revelado informações que confirmam esta realidade. Em São Paulo, na maior cidade do país e a que conta maior número de mortes por covid-19, são os bairros onde a população negra está mais concentrada que trazem a maior quantidade de óbitos pela doença.
Hoje, colhemos os frutos apodrecidos de uma sociedade pautada pela desigualdade. A violência contra o negro se manifesta em diversas áreas e de diversas formas: educação, renda, infraestrutura, mortes violentas. Entre 2012 e 2017, enquanto a violência contra as pessoas brancas se manteve estável, a taxa de homicídio de pretos e pardos aumentou em todas as faixas etárias, passando de 37,2 para 43,4 pessoas em cada 100 mil habitantes (IBGE).
Neste sentido, a data que lembra Zumbi (20 de novembro) é muito mais significativa para a nossa realidade, pois este líder lembra a constante necessidade da luta pela libertação dos negros. Esta libertação não será concretizada enquanto vivemos numa sociedade racista e desigual. Este sonho de liberdade não se tornará realidade enquanto legitimarmos políticas e governos que não respeitam a dignidade humana e tomam decisões baseando-se em preconceitos e racismos.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.