O brasileiro está novamente nas ruas. A favor ou contra o governo, o povo está fazendo campanha em prol do país e contra todos os que o saqueiam. Confundem-se aqueles que reduzem toda a questão a um problema partidário ou julgam que os atuais protestos estão voltados meramente para trocar “seis por meia dúzia”.
Há muita indignação e avidez por soluções, mais pouco foco e objetividade. Flerta-se com o ódio ideológico ou partidário, mas não se constrói uma nação sem um mínimo de racionalidade. Muita gente e vozes na rua, muito empunhar de chavões e de cartazes, muitas formas de expressar revoltas, que significam tanto mesmo quando nada especificam. Ainda assim, tudo poderá novamente cair na mais absoluta mesmice se não houver um firme propósito de compor uma alternativa ao modelo falido que aí agoniza.
O presidencialismo de coalizão em vigência contra o país não tem oportunizado sequer o aprimoramento das próprias instituições ditas democráticas. Passam-se os anos e as décadas, todavia, os antigos vícios e práticas reprováveis se perpetuam. Os que falam em revigorar as instituições democráticas são os mesmos que impedem a reforma política (legislativa, administrativa judiciária, bem como de instituições que atuam na órbita desses poderes) no Brasil. As instituições estão acomodadas em seus procedimentos excessivamente obsoletos e rotinas carcomidas de inefetividade.
O país começa a ferver nas ruas de novo, porém, muito pouco adianta se tudo ancorar reincidentemente nesse infindo “trocar de um nome por outro” sem exigir resultados efetivos. Eleições livres são fundamentais, mas democracia não rima com encenação nem jogatina, seja ela econômica, partidária, publicitária ou eleitoral. Não há solução à vista sem efetivas reformas. Não há mudança real se não se refundar a representatividade partidária e eleitoral no país, se não for revisto o financiamento privado de campanhas eleitorais, se não pôr fim aos eternos ciclos de reeleição do Executivo e do Legislativo, se não reestruturar certas instituições, se não mudar o que deve ser mudado.
As últimas e as atuais gerações de políticos revelaram-se incapazes de efetuar reformas substanciais, principalmente por serem incapazes de romper com os velhos esquemas, inclusive de captação de recursos privados por via das campanhas eleitorais. Para a grande maioria dessa geração de representantes rapinas, a eleição constituiu uma grande e lucrativa negociata, um jogo repleto de fetiches, e um fim em si mesmo. Uma deformação do processo eleitoral, que deveria ter consolidado a democracia, contudo, terminou por sufocá-la com abusos do poder econômico, abusos do poder de partidos e da mídia patrimonialista, dentre outros meios corruptores e danificadores do processo democrático.
Não é por coincidência que o país vivencia um momento histórico singular com a participação de segmentos expressivos da sociedade brasileira em manifestações e protestos nas ruas. Tratam-se ações em rede, coordenadas por multilideranças, cujo processo prescinde da velha fórmula de um único líder que reúne e conduz a todos. Não há mais espaço para esse antigo formato da liderança quase messiânica, que representa a todos que participam das sublevações. As lideranças são múltiplas e não há “donos” ou “partidos” ou “sindicatos” que mandam nas atuais manifestações populares de rua. Vivemos um tempo em que a figura do velho “líder” foi suplantada e substituída pela sociedade de rede, marcara pela pluriliderança e pela diversidade de discursos que se coordenam, inclusive de modo imprevisível. Não há mais espaços para blefes, para golpes e velhas demagogias. É necessário construir projetos e soluções consequentes.
Ruas nem povo irão faltar, mas soluções efetivas sim, se continuarem evitando a todo custo a possibilidade de rever o próprio sistema de governo – o presidencialismo de coalização que sabota e saqueia o país – e outras inertes instituições que se apequenaram e se deformaram no curso de um processo político histórico, ao longo do qual deveriam ter trabalhado para fazer do Brasil um Estado Democrático de Direito, sobretudo capaz de promover a liberdade, a justiça e o desenvolvimento compatíveis com a noção elementar de dignidade da pessoa humana.
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