O sistema capitalista, para não perder a sua força e hegemonia, tem buscado formas de sofisticação, partindo de um capitalismo comercial ou mercantil (séculos XV ao XVIII) para um capitalismo industrial (séculos XVIII ao XIX) e chegando ao capitalismo financeiro ou monopolista (a partir do século XX). Como forma de evoluir, o capital busca expandir a sua área de abrangência, procurando novos campos de atuação que possibilitem a continuação do processo de geração e concentração de riquezas nas mãos das elites locais, nacionais e internacionais.
Não se contentando com a construção de sociedades desiguais, que lançam milhares de pessoas em situações de privação e abandono, os grandes decisores (empresários, banqueiros e políticos), munidos de tecnologias de ponta, também se lançam contra o meio ambiente atingindo-o mortalmente. Geram o que atualmente tem sido chamado de crise ambiental. Os benefícios e perdas desiguais quase sempre resultam em proveito para os ricos e poderosos, deixando os pobres e os vulneráveis em situação precarizada.
Este processo avassalador tem provocado uma crise civilizatória que coloca em risco a existência da própria humanidade. Os estilos de vida, de produção e de consumo promovidos pela economia de mercado proporcionam uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para nós todos. Ademais, não há como negar que a deterioração do meio ambiente e da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis.
Há uma falta de consciência generalizada em relação aos problemas que afetam os pobres. Estes são a maioria do planeta, vários bilhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e econômicos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas são colocados como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta, permanecem frequentemente no último lugar (Papa Francisco, Laudato Sí, 2015).
Trata-se de um sistema político, social e econômico pautado na reprodução das desigualdades. Um sistema que promove a privatização de bens comuns essenciais como o saneamento básico. É o caso de várias cidades brasileiras, como Manaus, que há duas décadas sofre com a precariedade dos serviços de água e esgotamento sanitário, sempre despontando entre as piores grandes metrópoles brasileiras (SNIS 2018). As grandes empresas que assumiram estes serviços ao longo do período de privatização (atualmente, Águas de Manaus) têm se mostrado extremamente eficientes na geração de lucros para beneficiar os seus investidores, mas em se tratando dos serviços a serem realizados, têm batido recordes de reclamações e baixo desempenho, principalmente nas periferias, favelas e palafitas da cidade.
Esta realidade geralmente tem sido ignorada pelos poderosos que buscam a todo custo seguir os interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta. Os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente.
A crise provocada pelo coronavírus está desmascarando esta realidade, expondo dramaticamente a perversidade do capitalismo, que se expressa na fragilidade dos sistemas de saúde, de saneamento básico e de proteção social, que deixam milhares de pessoas em situações de abandono, sofrimento e morte. A teoria do estado mínimo, que desobriga o Estado de suas responsabilidades sociais, mostra a sua inviabilidade civilizatória, sendo forçada a dá lugar a politicas de solidariedade e de compromisso para com as populações mais pobres.
Emerge um contexto em que é preciso rever as nossas atitudes individualistas e competitivas, voltando-nos para ações que não têm lugar na racionalidade capitalista, como o cuidado para com os mais frágeis e a preocupação em relação à saúde da humanidade e do planeta. A ameaça trazida pela pandemia do coronavírus exige pensarmos uma nova ética, que se reflita em intervenções institucionais mais fraternas e responsáveis. Uma ética do cuidado, que inclui os humanos e não humanos, inclusive as gerações futuras.
Diante da tragédia da crise do coronavírus, os governos estão sofrendo pressões para saírem da inoperância diante dos graves problemas criados pela economia capitalista, marcada pela frieza dos cálculos, pela ânsia do lucro e pela indiferença em relação ao sofrimento do povo. Exige-se a imediata revogação de leis que impedem o investimento dos governos na educação, na saúde, na moradia, nos serviços básicos e priorizam o crescimento econômico em detrimento do bem-estar da maioria da população.
O cenário formado pela crise do coronavírus coloca em destaque o princípio ético segundo o qual a vida vem em primeiro lugar. Trata-se de valorizar a dignidade humana como o mais importante bem a ser protegido, destacando a urgência de se construir uma nova racionalidade baseada no comum, na cooperação e na solidariedade. O Papa Francisco impactou a todos com as suas palavras, sugerindo na última sexta-feira (25 de março de 2020), que é ilusão pensar que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente.
A covid-19 apenas revelou que vivemos numa sociedade há muito tempo doente, pois baseada na avidez do lucro e do consumismo, ela forma pessoas que se deixam absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Ela configura pessoas indiferentes face às guerras e injustiças planetárias, surdas ao grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. A covid-19 nos faz refletir sobre o modelo de sociedade mais adequado para garantir a vida de todos. O sistema capitalista já deu provas de que ele não dá conta desta empreitada e nem veio para isto.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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