A enorme desigualdade da sociedade brasileira ganha visibilidade na crise provocada pela pandemia do novo coronavírus. À medida que a Covid-19 avança sobre a população brasileira, a injustiça torna-se cada vez mais evidente, não podendo ser mascarada pelos grandes meios de comunicações, que propagam o discurso do progresso, o dogma da propriedade privada e a ideologia do consumo.
O sociólogo Jessé Souza concebe que o Brasil, ao ingressar na modernidade, realizando a abolição da escravatura, foi forjado sobre uma estrutura social desigual, que dividiu os brasileiros entre um pequeno grupo de cidadãos e um grande segmento de subcidadãos. Os escravos e pessoas sem posses foram abandonados pela sociedade e suas organizações, sem as mínimas condições de vida, sendo obrigados a viverem em situações de privação e humilhação perante as elites econômicas e políticas do Brasil moderno que estava nascendo.
A subcidadania, que coloca a população mais pobre no patamar inferior da organização social, dá continuidade à estrutura social do sistema escravagista. A modernidade brasileira, no entanto, passa a justificar tal discriminação através da ideologia do mérito, segundo a qual os pobres vivem na pobreza por não terem feito o suficiente para merecerem a ascensão social. Um flagrante absurdo do mundo capitalista!
Os grandes beneficiários da desigualdade social (banqueiros, grandes empresários e a maioria dos políticos), aliados aos principais meios de comunicações, procuram torna-la natural, inventando formas de ampliar cada vez mais a distância entre ricos e pobres. Neste sentido, os defensores do neoliberalismo têm conseguido avançar significativamente no processo de concentração da riqueza, promulgando medidas que inibem o Estado de realizar a sua função social de promover os direitos fundamentais da pessoa. Bloqueiam os investimentos do Estado na educação, na saúde, no saneamento básico, enfim, em serviços mais essenciais.
A desigualdade aparece em todas as partes do globo neste momento de crise, confirmando a tese daqueles que já percebiam o caminhar excessivamente lento da humanidade rumo a estágios mais civilizados. A irrupção da desigualdade neste tempo de crise mostra que precisamos intensificar os esforços na tentativa de fazer uma sociedade mais solidária. A lição que emerge diante de cada morte produzida pela covid-19 aponta para a certeza de que o sistema capitalista não responde, nem de longe, aos anseios e ideais de liberdade, respeito e justiça. Como diz o Papa Francisco, trata-se de uma economia que mata.
É chocante o fato de que em Nova York, uma das cidades mais ricas dos Estados Unidos, ocorra enterros de pobres em enormes valas comuns, mostrando que a barbárie capitalista e o conceito de civilização estão cada dia mais distantes, separados pela ganância e pelo egoísmo doentio. A maior cidade dos EUA é sede das duas maiores bolsas de valores do mundo e abriga a maioria dos bilionários, mas tem uma das piores políticas de segregação social que a selvageria neoliberal produz.
A história da Amazônia mostra o quanto este modelo econômico é prejudicial para o ecossistema e a maioria das pessoas que nele vive. A falta de transparência política, a prevalência de interesses exógenos e nocivos à região, a exclusão sistemática das populações urbanas e rurais e dos povos indígenas na concepção e na efetiva organização, execução e gerenciamento do território põe em risco a integridade da região e do seu povo.
A crise do coronavírus desmascarou uma estrutura social inviável para a maioria da população: o sistema de saúde cada vez mais sucateado pelas medidas neoliberais; o crescente processo de privatização do saneamento básico, transformando os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em privilégios de poucos; as políticas excludentes de moradia, que obrigam grandes contingentes de pessoas a viverem em palafitas, favelas e periferias sem infraestruturas; o sistema de transporte público, que desrespeita cotidianamente os cidadãos e trabalhadores; salários insuficientes para satisfazerem o mínimo das necessidades; e a morosidade da ajuda e proteção aos pobres.
É urgente que a sociedade se mobilize para pensar e colocar em prática outro modelo de economia. Um modelo econômico diferente. Trata-se de visualizar uma economia, que segundo o Papa Francisco, faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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