A atual crise sanitária que afeta Manaus e o Brasil nos leva a propor uma reflexão sobre os desafios de implementação do saneamento básico. A universalização do acesso aos serviços de água, como também do acesso ao esgotamento sanitário e coleta de lixo impacta diretamente os hábitos sanitários necessários para o controle e neutralização da covid-19. Assim, é preciso ponderar a política privatista destes serviços, que está em curso há duas décadas na capital amazonense, pois a mesma contribui para o avanço da doença.
Esta relação entre a efetividade dos serviços de água e esgoto e o combate à pandemia é confirmada por estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), segundo o qual as áreas onde se concentra a população mais vulnerável e com menos acesso à infraestrutura urbana, onde as condições de habitação são precárias e inadequadas, apresentam maior grau de vulnerabilidade à propagação epidêmica (IPEA, Nota Técnica nº 15, Abril de 2020).
Fatos e pesquisas indicam que as periferias das grandes cidades são caracterizadas por condições precárias de infraestruturas urbanas, tornando as populações destas áreas altamente vulneráveis à covid-19. O Jornal El Pais (18 de abril) confirma esta realidade, comunicando que “a periferia lidera as mortes por coronavírus na cidade de São Paulo”.
Em Manaus, o sistema de saúde colapsou à medida que os casos de covid-19 se concentraram nas zonas norte e leste, as áreas mais populosas da cidade e onde as condições de habitabilidade e serviços públicos são mais precários (BNC, 17 de abril de 2020). Segundo os órgãos de fiscalização (Procon e Agemam), estas zonas registram a maioria das reclamações dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da cidade.
A precariedade dos serviços prestados pela concessionária Águas de Manaus (controlada pela Aegea Saneamento e Participações) não é novidade para os manauaras. Os moradores das zonas norte e leste, por exemplo, se referem à água como um artigo de luxo, mostrando a preocupação das famílias em relação à infecção pelo coronavírus (Portal Emtempo, 01 de abril de 2020).
Em função desta atuação deficitária, o Conselho Municipal dos Serviços Públicos Delegados do Município de Manaus (CMR-AM) decidiu, recentemente, punir a empresa com a aplicação de multas que alcançam o valor de R$ 1,5 milhão por interrupções no fornecimento de água (Portal do Holanda, 12 de março de 2020).
Vale salientar que dados do Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS-2018) mostram que a cobertura da rede de distribuição de água alcança 91,42% de Manaus, mas a população que efetivamente está ligada a esta rede representa um percentual bem menor. Os dados do SNIS ignoram gigantescas áreas de habitações precárias (favelas, ocupações e palafitas). Estas áreas, mesmo abrigando numerosas famílias, não são consideradas partes da cidade, ou, para usar os termos de Ermínia Maricato, são as “não cidades”.
Esta situação desmascara a perversidade da gestão privada da água, que obedece à lógica do retorno econômico. Se o acesso à água é condicionado pelo pagamento de tarifas elevadas, milhares de famílias que vivem nestas áreas vulneráveis são impedidas de obter este bem de primeira necessidade. Deste modo, o controle da pandemia do coronavírus não pode ser realizado por estas pessoas, pois a falta de água não o permite.
O SNIS também fornece os indicadores do serviço de esgotamento sanitário, expondo com clareza a ineficiência da privatização. Segundo o SNIS, somente 12,43% da cidade possui este serviço, deixando um contingente de 1.878.708 pessoas em situação de vulnerabilidade, sem usufruir do tratamento de esgotos. Com isso a empresa contribui, significativamente, para a poluição dos rios e igarapés da cidade. E o pior, a falta de tratamento de esgoto torna possível a transmissão da doença por veiculação hídrica.
Considerando os indicadores fornecidos pelo SNIS, é possível elaborar o ranking do desempenho dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário dos municípios brasileiros. Contrariando aos que defendem a privatização do saneamento, constata-se que entre os 100 maiores municípios do Brasil, Manaus ocupa a 5º pior posição (96º colocado). Não é por acaso que os órgãos fiscalizadores locais identificam a concessionária Águas de Manaus entre as empresas mais reclamadas da cidade (Portal Acritica, 26 de dezembro de 2019).
Pesquisas desenvolvidas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) iniciaram estudos para verificar a presença de material genético do novo coronarírus em amostras do sistema de esgotos de Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Os resultados já apontam para a presença do corovírus nos esgotos, possibilitando a identificação das localidades em que vivem pessoas contaminadas, inclusive assintomáticas. Se, depois de excretados nas fezes, os vírus ainda estiverem aptos para infectarem outras pessoas, a cidade de Manaus está em sérios apuros, pois é cena corriqueira os esgotos escorrerem a céu aberto na maior parte da cidade e serem lançados nos igarapés, num flagrante crime ambiental.
Estes dados, assim como o histórico da privatização, evidenciam que os serviços de água e esgoto, em Manaus, não são tratados como bens comuns, que promovem vida e saúde para o conjunto da população, mas são estratégias de obtenção de lucros para as grandes empresas do setor. Conivente com esta situação, o Poder Municipal, titular constitucional dos serviços, se omite diante da atuação das empresas, aprofundando o caos sanitário.
A pandemia que já tirou centenas de vida em Manaus e no Brasil é um alerta para que revisemos a nossa forma de lidar com os bens públicos. Colocar sob a égide do mercado a gestão de bens essenciais é transformá-los em privilégios daqueles que podem pagar, ignorando a nossa histórica desigualdade social. Numa época de pandemia, quando estas desigualdades são evidenciadas, deixar as pessoas submetidas ao mercado equivale a transformar a sociedade num campo de batalha, onde somente os mais fortes sobrevivem. No entanto, somos desafiados a aprendermos da pandemia, tornando-a oportunidade de pensarmos qual projeto de nação e sociedade queremos.
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