A apresentação de uma política cultural para o governo de uma cidade deve hoje se orientar pela ideia de que as atividades culturais possuem uma grande capacidade de se constituírem em oportunidades de inclusão social e econômica, de geração de renda, e emprego, de um dos principais estimuladores do mercado de trabalho, sem contar com a participação cultural dos habitantes como exercício pleno da cidadania.
Nesse sentido, as ações a serem propostas em um plano de cultura para o município devem enfatizar o que elas representam em termos de seus resultados e benefícios para a população da cidade.
É necessário que, além disso, as ações culturais sejam tratadas como oportunidades para a proposição de um novo modo democrático de organização da sociedade, no qual a cultura não apareça como um espaço restrito a apenas uns poucos, mas que esteja ao alcance de todos, independentemente da situação social, do gênero, do lugar de residência, de idade, enfim, da condição humana dos indivíduos e grupos para os quais deverão estar destinadas as ações aqui sugeridas.
A cidade de Manaus já foi uma cidade culturalmente sólida, embora marcada pela decadência econômica e pelo abandono político. Sua população carregava uma rica mescla de tradições culturais indígenas, europeias e brasileiras, alicerçada por uma elitista, mas sólida rede educacional. Era uma cidade que usufruía de uma cultura orgânica, coerente, perfeitamente inteligível para a esmagadora maioria da população. Em 1968 o regime militar após cortar ao meio a região amazônica, dividindo-a em Amazônia Oriental e Ocidental, impõe ao Amazonas a Zona Franca de Manaus, área de renúncia fiscal inspirada em soluções coloniais largamente utilizadas na África no século XIX.
Do ponto de vista cultural foi um desastre. Entre 1968 e 1970 a cidade Manaus passa de cerca de 350 mil habitantes para 600 mil, para atingir a marca dos dois milhões em 2009. Nenhuma cidade suportaria tamanha explosão demográfica sem sofrer terríveis consequências. Especialmente por se tratar de uma explosão demográfica provocada não pelo aumento exponencial da taxa de natalidade dos nativos, mas pela intensa migração. O Distrito Industrial, planejado para absorver 50.000 operários com baixos salários, tornou-se um pólo de atração para os deserdados dos bolsões de miséria mais próximos. Esta massa de imigrantes provinham de áreas onde não contavam com educação, sistema de saúde, trabalho ou segurança. Este tipo de massa oriunda do campo carrega um dilaceramento cultural profundo, e por isso, em sua nova terra não consegue estabelecer vínculos ou compreender a cultura que os recebe, sem que os poderes públicos e a sociedade proporcionem meios de recepção e integração. Infelizmente isto não aconteceu. Levas e mais levas de imigrantes sem qualificação, analfabetos, sem documentos, despidos de identidade, foram espalhados em invasões que se transformaram em favelas. No final do século XX aportavam em Manaus aproximadamente 140 famílias por dia, o que logo se transformou em maioria, soterrando os nativos e colonizando culturalmente a capital amazonense.
O Que é uma política pública na Democracia?
Uma primeira e fundamental questão: as políticas públicas não surgem para promover mudanças. Aparecem e se desenvolvem como resultado do surgimento de demandas sociais. Estas, por sua vez, decorrem de um processo histórico específico.
Uma vez surgida a demanda, e está se caracterizando como algo que o Estado deva suprir, aí é que as políticas públicas podem aparecer como agentes de mudança. Na verdade, a “mudança” proposta pelas políticas públicas aplicadas é, na verdade, a resposta a uma série de condicionantes que se desenvolveram de forma contraditória em sociedades de classe. Em um primeiro momento, essa demanda pode estar circunscrita a camadas e setores sociais bem reduzidos que, paulatinamente, vão se ampliando.
Essas demandas, para se transformarem em agendas públicas. necessitam de diferentes catalisadores: pensadores, políticos, movimentos sociais e reivindicativos.
A ação desses catalisadores induz, muitas vezes, uma percepção ideológica da demanda: assim, a educação generalizada aparece, para muitos, como o resultado do processo da ilustração. E a ação do Estado aparece como sendo resultado de campanhas movidas por próceres, sábios que percebem o problema
No entanto, o mal está feito. O estigma da incivilidade que se colou ao nosso Estado cada vez fica mais difícil de ser superado. As suas manifestações podem ser vistas em quase todos os momentos da vida amazonense. Manifestações de brutalidade, a ascensão de crimes violentos por motivos fúteis, a falta de educação, os baixos hábitos de higiene, o desrespeito deliberado aos códigos de postura que regem a vida nas cidades, e a escolaridade insuficiente transformaram o convívio em mero exercício de sobreviver. E uma sociedade que apenas sobrevive, é porque mergulhou na barbárie.
Lei Municipal de Incentivo à Cultura
O mecanismo mais eficaz para o fomento das artes na cidade de Manaus é a promulgação da Lei de Incentivo à Cultura, libertando os criadores das amarras dos editais.
A Lei não compromete a meta de arrecadação do ISS (Imposto sobre Serviços) da Semef (Secretaria Municipal de Finanças). Apenas 2% são postos à disposição para fomento à cultura, após a arrecadação do ISS. Ou seja, as autoridades têm controle direto imediato sobre esses 2% e apenas os projetos aprovados e incentivados por empresários que estejam completamente legais receberão o aporte financeiro em conta bancária exclusiva.
Nos três primeiros anos de vigência da lei, de acordo com o histórico das cidades que promulgaram leis semelhantes, apenas 0,50% dos 2% de renúncia são utilizados anualmente. Os empresários, naturalmente cautelosos, hesitam em usar a lei até se certificarem das vantagens práticas dos patrocínios.
Os projetos serão examinados com grande rigor. Seguirão critérios rígidos de acessibilidade, contrapartidas sociais e democratizantes.
A Lei Rouanet é praticamente inacessível para o mercado cultural de Manaus, por utilizar renúncia do Imposto de Renda de empresas com lucro real. No Brasil, contando as estatais, que dão preferência ao mercado do centro sul, apenas 300 empresas são consideradas de lucro real. No estado do Amazonas apenas existem quatro dessas empresas.
As cidades que contam com leis municipais tiveram uma taxa de crescimento de 2,5% ao ano no mercado cultural. O que impactou positivamente a arrecadação de ISS. Cultura é serviço.
Mesmo aprovando apenas 1% da renúncia o mercado cultural do trabalho receberá um impacto positivo. Isto vem acontecendo em cidades como Belém, por exemplo, libertando os produtores culturais dos editais e promovendo uma aproximação educativa entre as ações culturais e o empresariado.
Como o mercado cultural faz parte do segmento de serviço, toda a renúncia fiscal oferecida pela Lei de Incentivo estimulará mais arrecadação de ISS em Manaus. De certo modo a municipalidade estará entregando um incentivo com a mão esquerda e pegando quase que imediatamente de volta com a mão direita.
As telefônicas e os bancos, que recolhem ISS em Manaus, não aceitam mais patrocinar pela Lei Rouanet, apenas através de leis municipais, estreitando ainda mais as opções dos artistas locais.
As cidades com leis municipais baseadas no ISS tiveram um número ascendente de projetos de circulação nacional, intensificando o intercâmbio cultural entre as regiões. No Rio de Janeiro a cadeia hoteleira é grande defensora da lei municipal.
Manaus é uma das últimas cidades sem uma Lei Municipal de Incentivo à Cultura, conforme recomendação do Plano Nacional de Cultura do Governo Federal. Agrava-se pelo fato do Estado não oferecer uma Lei Estadual de Incentivos à Cultura. O mercado cultural aqui é órfão.
De acordo com o filósofo e político italiano Antonio Gramsci, o Estado não deveria ser visto apenas como Governo. Gramsci faz a divisão de Estado em sociedade política e a sociedade civil. Segundo ele, a sociedade política é referente às instituições políticas e o controle legal e constitucional que exercem. Já a sociedade civil é vista como um organismo não-estatal ou privado, que pode incluir a economia, por exemplo. A sociedade política é conotada com a força e a sociedade civil com o consentimento. Ou seja, a sociedade civil ( no caso, as organizações sociais) chega onde o poder público não pode alcançar e é corrompida ao se submeter ao clientelismo de interesses políticos eleitoreiros ao invés de dar sua contrapartida de forma justa, ética e social para a cidadania e qualidade de vida de todos. O que é o inverso da manutenção eterna de seletos grupos com o dinheiro público.
Essa proposta é resultado de intenso debates dentro das reuniões do conselho municipal de cultura de Manaus,aqui um resumo do que estamos preparando, para que finalmente em 2017 sejamos contemplados com a assinatura e normatização de lei municipal de incentivo a cultura na nossa cidade Manaus,
Marieny Matos Nascimento é membro do conselho municipal de cultura na cadeira de projetos especiais.
O texto foi ótimo, parabéns!