Neste dia em que se comemora internacionalmente o Dia Mãe Terra, apresentamos uma parte importante deste planeta ‘banhada em sangue’, numa referência ao cenário apresentado na 34ª edição do relatório anual ‘Conflitos no Campo Brasil 2019’ publicado na última sexta-feira, dia 17 de abril, Dia Mundial de Luta Camponesa, pela CPT (Comissão Pastoral da Terra), instituição vinculada à CNBB (Conferência dos Bispos do Brasil).
O relatório ‘Conflitos no Campo Brasil 2019’ é um levantamento anual realizado em parceria com diversas instituições, dentre as quais o Ministério Público Federal, que apontam conflitos, atentados, ameaças e assassinatos envolvendo questões agrárias, terra e território no Brasil. Este relatório é realizado com metodologia que envolve pesquisa de campo e leitura dos dados realizada por especialistas, pesquisadores(as) vinculados a universidades e institutos de pesquisas altamente capacitados e autorizados a tecer considerações sobre os dados e elaboração de tabelas que sistematizam os resultados.
Os dados se referem a diversas forma de conflitos socioambientais envolvendo terra, água e território. E começa o levantamento anual com as 250 vítimas do crime cometido pela mineradora Vale no rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, no município de Brumadinho em Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019. As vítimas são homenageadas com seus nomes escritos na contracapa da referida edição.
No capítulo dedicado à análise da questão da terra, a jornalista Eliane Brum tece alguma consideração sobre a “a miliciarização da Amazônia: como o crime vira lei e o criminoso “cidadão de bem” na maior floresta tropical do mundo” e explica de forma didática como a legislação tem funcionado para criminalizar as lideranças socioambientais da Amazônia e livrar a culpa dos mercantilistas de terras e recursos naturais às custas da vida de tantas pessoas assassinadas de impunimente na região.
Sobre o aumento assustador da violência na Amazônia, Brum destaca que “em 2019, o número de famílias que sofreram invasões de suas casas e terras na Amazônia Legal cresceu 87% comparado a 2018, que já foi um ano muito difícil, por conta da brutal campanha eleitoral bolsonarista. Do total de famílias que sofreram invasão por grileiros, madeireiros e fazendeiros em 2019, 64% estão na Amazônia: 25.516 famílias de um total de 39.697 em todo o país. Também é a Amazônia que concentra 73% das tentativas de assassinato e 79% dos ameaçados de morte no Brasil por conflitos de terra: 158 pessoas de um total de 201”, esclarece a jornalista.
Outro dado que assusta é o crescimento da violência contra os povos indígenas. O capítulo intitulado “Governo Bolsonaro: o retrato da barbárie contra os povos indígenas e a vida” assinado por Sônia Guajajara analisa as tabelas que indicam o crescimento absurdo de conflitos, ameaças e assassinatos de lideranças indígenas. Guajajara assegura que o discurso anti-indígena por parte do governo reforça e legitima a violência praticada por setores da sociedade que, desde a colonização, nunca conseguiram admitir o direito dos povos indígenas ao território. “O principal foco dos ataques são os territórios tradicionais, seja para a exploração de madeira, minério, expansão agrícola de fazendas, agronegócio ou especulação imobiliária. Com isso a vida, de todo mundo que luta em defesa da Terra e do meio ambiente está em risco. Por decisão política todos os processos de demarcações estão paralisados” assinala Sônia Guajajara.
Na mesma proporção, igualmente alimentado pelo discurso oficial, o relatório aponta o crescimento exponencial contra as comunidades quilombolas em seus territórios tradicionais. Da noite para ao dia, são assinados decretos e projetos de lei em favor do capital privado que avança em toda a Amazônia passando por cima dos direitos dos povos quilombolas como ocorre atualmente em Alcântara, no Maranhão.
Outro dado que chama a atenção em todo o relatório é a forma covarde com que tem ocorrido reintegrações de posses com inversão de valores éticos e morais quando da transferência de terras ocupadas por camponeses vinculadas à agricultura familiar, devolvidas a grileiros independentes ou latifundiários com processos agrários em andamento na justiça. Este fato deixa claro que a justiça tem se posicionado em favor da propriedade privada e do grande latifúndio em detrimento do direito ao uso coletivo da terra.
Em muitas regiões a justiça está estreitamente vinculada aos interesses da elite rural. Esta é uma herança maldita da colonização que ainda se mantêm em muitas regiões onde as oligarquias ruralistas produzem seus juízes, promotores, delegados, policiais e todo o aparato de justiça num arranjo intrafamiliar que resulta num posicionamento claro em defesa dos interesses da propriedade privada mesmo que isso implique em passar por cima dos direitos à terra e ao território adquiridos historicamente pelos povos indígenas, camponeses, ribeirinhos, quilombolas, seringueiros e outros povos.
Chama a atenção no relatório a pertinência da concentração da violência na Amazônia e os novos métodos de violência piores e mais eficazes que o assassinato, alerta a jornalista Eliane Brum.
“Os grileiros parecem ter compreendido um pouco mais que se matar segue sendo um método de eliminar a resistência, aterrorizar pode ser mais eficiente e deixa menos rastros. Além disso, chama menos atenção. O medo passou a ser um elemento tão presente no cotidiano quanto o ar para muitas lideranças e camponeses. Quem já viveu com medo sabe que respirar o medo junto com o oxigênio é uma das sensações mais aniquiladoras que existe”, diz Brum.
Na raiz de todos estes conflitos está a luta em defesa da Amazônia e dos direitos de seus povos. São dois modelos de sociedade em disputa. De um lado o modelo daqueles que querem continuar convivendo com a Amazônia sem destruir suas florestas, sem contaminar suas águas, sem comprometer seu bioma e sem exaurir seus recursos naturais entendidos como direitos coletivos. De outro lado, um modelo capitalista de exploração desmedida que pactua a propriedade e o capital privado que vem banhando de sangue toda a Amazônia em nome de um desenvolvimento imediatista e predatório.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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