Os ‘Pássaros de Passagem também são mulheres’ é a tradução do texto Bird sof passage are also women de Mirjana Morokvasic, publicado em 1984. Trata-se de um dos primeiros estudos que problematizaram a participação das mulheres nas migrações internas e internacionais. A referida autora observa que a partir da década de 1980, nos países do norte da Europa, o número de mulheres migrantes superava o dos homens, obrigando os estudos migratórios a considerar a variável de gênero nas abordagens das migrações internacionais.
No atual contexto internacional, as migrações estão estreitamente relacionadas com o reordenamento internacional do trabalho. Mas, não somente com este fato. Há que se reconhecer que diversos são os fatores que empurram multidões inteiras para a migração. Na atualidade, há que se considerar que mais da metade dos migrantes não migram por vontade própria. São forçados à migração pelas guerras, conflitos internos ou internacionais, crise econômicas, políticas ou humanitárias em países castigados por embargos econômicos, conflitos agrários e socioambientais, violência, eventos ambientais e climáticos, sobreposição de grandes projetos econômicos em terras indígenas, quilombolas ou de outros grupos tradicionais. Estes e muitos outros fatores corroboram com as migrações.
Os migrantes sonham com dias melhores e se deslocam em busca de “melhoras”. Essa motivação é o que faz os migrantes assumirem os riscos das migrações que não são poucos. Os deslocamentos submetem os migrantes a situações de vulnerabilidade. Podem ser vítimas da exploração, do engano, do contrabando, do trabalho escravo e até mesmo do tráfico humano que abrange homens e mulheres. Cada vez mais aumentam as redes de exploração dos migrantes em situação de deslocamento. Mas, aumentam também os gestos de acolhida e solidariedade aos migrantes.
Outra característica das migrações na atualidade é o aumento das mulheres nos fluxos migratórios. Como afirma Mirjana Morokvasic (1984) elas sempre migraram, mas, nem sempre foram mensuradas nas estatísticas migratórias. Reconhecer a participação das mulheres nas diversas dinâmicas migratórias nos permite dar nome, rosto e gênero às migrações. Parece simples, mas, este reconhecimento tem uma influência importante na incidência de políticas públicas para os migrantes e nas políticas migratórias nacionais e internacionais.
Desde 1984, estudos de Mirjana Morokvasic apontam o crescimento cada vez maior da feminização das migrações. Em algumas situações de deslocamentos elas representam a maioria dos migrantes e tornam-se o alvo preferido das redes de exploração das rotas migratórias e do trabalho dos migrantes. As histórias de vida de muitas mulheres migrantes recolhidas em nossas pesquisas de campo de 2010 até o momento atual, revelam a luta permanente das migrantes.
Milena, uma venezuelana de 23 anos, deixou o curso de direito na Venezuela para tentar a vida em Manaus. Ela conta que “saiu de Puerto Ordaz no início de dezembro com sua irmã, também estudante do curso de educação da Universidad Católica Andrez Bello”. Não tinham mais condições de continuar os estudos e buscaram Manaus para trabalhar e estudar. Sem emprego e ainda sem documentos, as duas estão nos semáforos da cidade fazendo malabarismos para ganhar algumas moedas dos motoristas (Pesquisa de Campo, 2018).
Sunaya, 24 anos, também saiu da Venezuela, do Delta Orinoco no início de 2016. Tem quatro filhos, o último nasceu no mês de julho passado em Boa Vista, Roraima. Já providenciou o pedido de permanência no Brasil com base em prole brasileira, conforme garante a nova Lei Migratória. Passou por Pacaraima, na fronteira, viveu alguns meses em Boa Vista e viajou para Manaus. Ainda não encontrou trabalho. Vive da “coleta nos semáforos”. Explica que migrou, junto com “seu povo Warao porque envenenaram rio Orinoco. As mineradoras mataram os peixes e os animais e já não se podia mais circular para coletar os frutos da floresta” (Pesquisa de Campo, 2018). Este é um caso evidente de deslocamento compulsório, quando a migração é um ato forçado.
Lourdes, 34 anos, está de volta depois de morar dez anos na Europa. “Aos 22 anos, recém-formada em educação física, por influência de uma amiga, fui morar na Itália para trabalhar como cuidadora de um idoso. Depois de três meses fiquei sem trabalho e com a dívida da passagem ainda em aberto. Fui parar na prostituição e vivi os piores anos da minha vida na Europa. Graças ao apoio de pessoas boas que conheci na Alemanha, no movimento de mulheres, consegui voltar para Rondônia e recomeçar minha vida em 2016” (Pesquisa de Campo, 2017).
Estas e muitas outras histórias de vida demonstram os desafios das migrações na atualidade marcadas pela feminização das migrações, pela exploração dos migrantes e pelos gestos de solidariedade das sociedades de acolhida. Revelam também a urgência de políticas migratórias em todas as sociedades que garantam os direitos civis de milhares de pessoas, dentre elas muitas mulheres, em situação de deslocamento.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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