Leio no momento a trilogia escrita pelo jornalista Lira Neto sobre a vida de Getúlio Vargas. Já concluo o terceiro volume, que vai dos anos de 1945 a 1954, do exílio em São Borja, na estância de Santos Reis e na Fazenda Itu, ao suicídio no Palácio do Catete. Em grande parte, como pano de fundo, tem-se um retrato do Brasil do final do século XIX a meados do século XX, com seus mais expressivos personagens, no jogo político que dominou o largo período versado pela obra.
Com todos os seus equívocos históricos, devo dizer que guardo admiração pelo estadista gaúcho, herança de meu velho pai, trabalhista apaixonado, que fazia questão de ter emoldurada a Carta Testamento de Vargas em lugar de destaque na sala de nossa velha casa em Itacoatiara. O trabalho de Lira Neto revela-se com elevado grau de isenção, ao mostrar as facetas mais díspares do homem público que empolgou a República ao longo de mais de 20 anos, em três períodos de governo e mesmo fora do poder.
Pinço no trabalho do biógrafo expressão de autoria de uma das eminências pardas de Getúlio, o advogado, jornalista e industrial do ramo de tecidos, José Soares Maciel Filho, mais conhecido como Maciel Filho. Ao ser nomeado para assumir o comando Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE, atual BNDES, tornou-se alvo de intenso bombardeio da bancada da UDN no Congresso, no ano de 1952, que o acusava de não ter qualificação pessoal e técnica para assumir o cargo. Além de acumular a direção da Superintendência da Moeda e do Crédito – Sumoc, órgão que antecedeu o Banco Central, passou a desprezar no preenchimento de cargos na instituição as exigências do mérito e do concurso público, certo de que haveria necessidade de um percentual mínimo de 20%, como “inevitável taxa de meretrício político”.
Em suas memórias, diz Roberto Campos que Maciel Filho era extremamente despreparado. Apelidado de “Maciel Bundinha”, em atenção ao glúteo reduzido, Campos lembra que testemunhou um encontro do novo dirigente do BNDE com o embaixador americano Merwin Bohan, “humilhante e demonstrador do nosso supino grau de subdesenvolvimento econômico”. Num “portunhol de província”, Maciel Filho deixou estarrecido o diplomata estadunidense, ao declarar que tinha o poder de rodar a máquina e emitir moeda, como dirigente da Sumoc, a fim de atender à contrapartida exigida ao Brasil em empréstimo a ser celebrado com o Eximbank. Estupefato, o embaixador Bohan olhou a ambos “imaginando o que ocorreria ao processo inflacionário brasileiro se um homem com essa percepção continuasse por algum tempo na Sumoc”, ainda segundo Roberto Campos.
Ontem como hoje é no que dá a indicação e nomeação de apadrinhados, apaniguados ou de serviçais do poder, despidos da menor capacitação profissional. Lá atrás, pelo menos, o percentual de 20% não se mostrava tão elevado como agora. O PT e seus governos preenchem de maneira absoluta as funções e cargos comissionados. Não apenas na administração direta, mas de igual modo na indireta, em empresas e bancos públicos e nas sociedades de economia mista. Maciel Filho, como se observa, bastante módico diante dos percentuais ora vigentes, sentir-se-ia no mínimo enrubescido com a farra do aparelhamento despudorado do Estado brasileiro.
Tudo atualmente no Brasil cheira a balcão, as siglas partidárias de aluguel, as negociatas parlamentares e a relação promíscua entre os poderes do Estado, sob a égide do pecaminoso presidencialismo de coalizão. No plano político, com raríssimas exceções que apenas confirmam a regra, nada se faz no país sem uma compensação criminosa, em cima de acordos celebrados no submundo da política e do poder.
Os focos putrefatos se disseminam como metástase e é assim que a população chega a mais uma eleição geral, com a responsabilidade de eleger do presidente da República ao deputado estadual, num ambiente de desencanto e desesperança. Em todos os níveis da Federação, a ausência de obrigação ou comprometimento com o interesse público dá a tônica, com discursos vazios ou recheados de promessas não factíveis, fundadas na mais incerimoniosa demagogia, com o único propósito de ludibriar os incautos e conquistar o governo.
É o meretrício de sempre na política brasileira, agora levado às últimas consequências, sob o petismo, com o qual comercializa-se o corpo da Nação e reparte-se a administração pública. Corrompe-se na origem as formas de constituição da representação popular e fere-se de morte a democracia que agoniza sem perspectivas concretas de futuro.
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