No ensaio clássico de interpretação da conjuntura política no mundo moderno, no livro 18 de Brumário de Luis Bonaparte, Karl Marx, ainda criticando Hegel, comenta a ideia de afirmação de uma realidade cíclica da história. Hegel afirmava que a história se repetia para afirmar alguns processos do espírito. Marx não abandonou essa ideia, mas se opôs a ela ao aperfeiçoá-la. Para ele, a história “se repetia” de duas formas: a primeira como tragédia e a segunda como farsa.
Em outras palavras, em diversas etapas da história haverá uma sensação de novidade enquanto todos os fatores essenciais permanecem imutáveis. Da mesma forma, o contrário é válido, um realidade desgastada e conservadora pode vir a tona, trazendo contradições novas que movem a espírito da história verdadeiramente. Pode-se dizer isso sobre o atual momento político dos EUA.
A possibilidade de eleição do Donald Trump, como sucessor de Barack Obama movimentou as notícias por todo o mundo por mais de um ano. Por razões óbvias, quem – em tese – manda na política do maior país do mundo, manda em boa parte do mundo.
Portanto se criou uma ilusória cisão moral entre Hillary e Trump, como se houvesse um mal menor e um mal maior evidente. Se entende tal distinção pelo traço caricato do cansadíssimo eleito pelo Partido Republicano, com discursos bizarros e sem propostas políticas e econômicas razoáveis ou bem explicitadas. De tão grotesco que é o bilionário, Hillary destinava boa parte de seu discurso de campanha para evidenciar os atributos bizarros do opositor.
Não faz sentido achar Hillary menos opressora de minorias por ser mulher ou por não explicitar discursos criminosos como o de Trump. Hillary ganhou, informalmente, o apelido de “Killary” não à toa, e sim pela sua certa responsabilidade aos ataques sistemáticos no Oriente Médio, intimamente relacionado, claramente, pela sua ligação próxima com a grande burguesia americana, a indústria armamentista, aquela que de fato manda e desmanda e sob a qual os governantes prestam serviços em última análise, como os grandes banqueiros, proprietários das multinacionais, donos das poderosas indústrias, etc, como afirma o sociólogo William Domhoff.
Toda essa sujeira institucionalizada do partido Democrático – que passa longe dos microfones midiáticos – foi ainda mais encoberta pelo discurso ridículo do novo presidente eleito. Este promete agora uma política externa menos liberal, isto é, anulando alguns acordos de livre comércio com países do Pacífico, além de dificultar relações com os asiáticos. Aumentaria, assim, o protecionismo americano. Em contrapartida iria fortalecer a política liberal para dentro do perímetro, prometendo anular políticas públicas como o Obamacare, e outros ensaios do partido opositor, apostando no livre comércio.
O que está em real disputa nessa eleição é o poder de diferentes classes burguesas. Os dois candidatos se articulam com frações diferentes dos “donos do mundo”. Com a vitória do republicano, a tendência é uma alteração significativa no establishment, por este representar com a parte “menor” dos poderosos.
Análise de conjuntura nunca serviu para prever o futuro propriamente, porém ela nos dá perspectivas diferentes diante da estreita análise do possível e do necessário. Hillary, caso fosse eleita, repetiria a história enquanto farsa, continuaria uma política idêntica a Barack Obama. Nada novo aconteceria em termos de ruptura da história.
Contudo, a eleição do Trump escancara uma tragédia autêntica, e não apenas como repetição. Por mais que vista certos predicados já conhecidos, seu momento e suas consequências poderão ser inovadoras. Os EUA escolheram um monstro que não pretende se esconder como tal. Um sujeito que não faz o mínimo do tipo civilizado para esconder suas misérias políticas, como faz sistematicamente imensa parte desta classe a qual pertence.
Trump é mais apto acirrar contradições para dentro do império do que Hillary, e são essas contradições que movimentam a história. Não está presente no republicano o vento da novidade. Entretanto, sua eleição representa um sintoma. Isto é, pode-se ver uma clara desilusão em relação as reais poderes da democracia representativa e da classe política como tal. Isso escancara o que sempre foi real: ela nunca existiu para representar o povo.
A eleição de Trump se assemelha, de certa forma, à eleição de João Dória, em São Paulo. Escolheram um sujeito tradicional, rico e conservador, porém com uma característica que dialogava, aparentemente, com o que precisamos de novidade. No caso dos dois, não se assume a figura de político, mas sim de empresário, gestor das contas públicas, que trará de volta a prosperidade econômica. Um blefe.
Também ganha semelhança por escancarar que a direita esta sendo mais competente em fazer o trabalho fundamental que a esquerda deixou de fazer, isto é, lutar pela conscientização da classe trabalhadora. Dória e Trump conquistaram as massas num discurso que mais dialogava com o que os interesses individuais trazidos pela ideologia burguesa.
O farsa de hoje escancarou a tragédia de nosso tempo. Contudo vale lembrar, elas que fazem a história se mover, não como farsa nem tragédia, mas como esperança…
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