No Brasil, o dia da Polícia é um clássico caso em que a razão histórica sucumbiu às razões políticas ou à oficialização da história. Justificou-se eufemisticamente que ocorreu apenas o enquadramento da polícia nesse dia de homenagens, a fim de ressignificá-la historicamente. Entretanto, o que ocorreu, de fato, foi o predomínio da versão oficial sobre o fato histórico, o que não diminui a relevância das instituições policiais nem de sua formação histórica.
Convencionou-se instituir a data de 21 de abril “Dia da Polícia” no Brasil, seja civil seja militar, em homenagem a Tiradentes, símbolo da luta pela independência política do país. Nesse dia, em 1792, executou-se por enforcamento o inconfidente, alferes da 6ª. Companhia de Dragões de Minas Gerais, que assumiu toda a responsabilidade pelo movimento emancipacionista. Não bastasse enforcá-lo e esquartejá-lo, exibindo ostensivamente seus restos mortais em vias públicas, a sentença declarou infame sua memória e também seus descendentes. E teve ainda o “infame” réu, Joaquim José da Silva Xavier, a casa em que morava arrasada, o terreno salgado para que nada ali germinasse, e os bens confiscados pela Coroa e Câmara Real. Seu nome foi excluído dos registros e da história oficial. Um caso que mereceu atenção, repressão e punição “exemplar” por parte da Coroa portuguesa. Contudo, a República reabilitou a relevância dos feitos e da memória do singular alferes. Por ser considerado um antecessor dos atuais policiais, 21 de abril, de acordo com o Decreto-lei n° 9.208 de 29 de abril de 1946, passou a ser também o Dia da Polícia, em homenagem ao mártir da Inconfidência, herói nacional, Tiradentes.
Sem nada desmerecer à homenagem, a história da polícia no Brasil tem outras datas e fatos que marcam sua formação no tempo. Enquanto instituição, a Polícia tem referências desde a chegada ao Brasil do governador-geral Martin Afonso de Souza, em 1530. À época, sua finalidade era a de promover a justiça e organizar os serviços públicos. Até a chegada de D. João, em 1808, a Polícia brasileira sofreu várias reformulações. No Brasil, há dois modelos de Polícia: a Civil e a Militar.
Distintamente da Militar, a Polícia Civil tem origem na Intendência Geral de Polícia, fundada no Brasil a partir de 1808, após a chegada da família real portuguesa. Já em terras coloniais, o príncipe regente, D. João VI, criou a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Brasil com o Alvará régio de 10 de maio de 1850. Essa medida administrativa é o marco inicial de todas as polícias civis do Brasil, inclusive a do Amazonas.
Cerca de um mês antes, em 05 de abril de 1808, havia sido nomeado para o cargo de Intendente Geral de Polícia da Corte e do Brasil o desembargador e ouvidor geral do crime, Paulo Fernandes Viana. Por cerca de doze anos, Fernandes Viana exerceu a direção da Intendência Geral (até 1821), sendo por isso considerado fundador da Polícia Civil no Brasil.
Com a criação da Intendência Geral de Polícia, desativou-se o policiamento realizado pelos chamados “Quadrilheiros”, criado desde 1383 pelo rei Fernando I de Portugal. Esses policiais, encarregados da vigilância em geral, eram selecionados dentre os moradores da localidade que gozavam de confiança, eleitos numa assembleia de juízes e vereadores para atuarem por três anos, após juramento. Não recebiam salário, mas podiam apossar-se das armas de ladrões e malfeitores. Os quadrilheiros atuavam numa área geográfica delimitada e nomeada de quadrilha, composta por quadras ou similar a quarteirões, donde vem o nome.
A fundação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Brasil também pôs termo a outros “serviços” de polícia como aqueles prestados por alcaídes e ministros criminais, estes também chamados meirinhos. A Intendência Geral fundou, na realidade, uma estrutura que seria a raiz da Polícia Judiciária brasileira, à época, em unidades administrativas chamadas de Províncias. O Intendente Geral nomeava seus delegados para cada Província do Brasil e, por essa iniciativa, firmou-se a designação Delegado de Polícia, cargo criado com o Alvará de 05 de abril de 1808, mesma ocasião em que foi criada a Intendência Geral de Polícia.
A finalidade dessa primeira estrutura de Polícia era, em síntese, proteger politicamente o governo colonial, o monarca D. João VI e a nobreza, informando-o acerca do comportamento do povo. Buscava resguardar a população do contágio com as “terríveis” ideias liberais propagadas a partir da Revolução Francesa, fomentada pelo Iluminismo, que estava varrendo as monarquias e os privilégios da nobreza por toda Europa. Compreensível assim o temor de João VI, monarca absolutista e teocrático, num tempo de desmonte do antigo regime, especialmente considerando que também na colônia brasileira reprimiam-se movimentos emancipacionistas (Inconfidência Mineira, 1789; Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, 1798; Revolta Pernambucana, 1817; e outros).
Depois do afastamento de Paulo Viana, o comando da Intendência Geral passou a Francisco Alberto Teixeira de Aragão (1824-1827), que introduziu mudanças e reorganizou a Polícia à época. Com promulgação do Código de Processo Criminal do Império, em 29 de dezembro de 1932, desativou-se a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Brasil, uma vez que o mencionado Código de Processo Criminal, além de estabelecer leis penais e processuais próprias do novo país, reformulou o sistema policial no Brasil imperial.
O Código de Processo Criminal do Império (1932) delegou atribuições policiais aos Juízes de Paz, ocasião na qual surgiram as primeiras normas de organização judiciária-policial, com a divisão do Brasil em Distritos, Termos e Comarcas, circunscrições para aplicação da lei.
No Amazonas, à época Comarca do Alto Amazonas, que integrava a Província do Pará, a fim de dar efetividade ao Código de Processo Criminal do Império (1832), foi escolhido, em 03/01/1834, o vereador Henrique João Cordeiro para função de juiz municipal, a quem coube também administrar a polícia, com o título de Chefe de Polícia, sendo, portanto, o primeiro a ocupar a função. Henrique João Cordeiro, ex-vereador de Serpa, atual Itacoatiara, foi juiz e chefe de polícia sem ser graduado em qualquer área. Somente a partir de 1842, conforme o art. 26 do Regulamento 120, é que os delegados passam a ser nomeados dentre os bacharéis formados.
Com a elevação da Comarca à categoria de Província do Amazonas (1850), assumiu a função de Chefe de Polícia, a partir de 1852, o juiz de direito Manoel Gomes Correa de Miranda, pois a legislação à época estabelecia que o juiz deveria acumular a chefia de polícia e ainda os foros da Fazenda. Posteriormente, com a criação do cargo de Chefe de Polícia para a Província do Amazonas, por meio do Decreto régio de 3 de fevereiro de 1854, o Imperador nomeou o bacharel Policarpo Nunes Leão, juiz de direito, para ocupá-lo, o qual iniciou o efetivamente o exercício a partir de 13 de dezembro daquele ano. Desse modo, a Província do Amazonas, que contava à época com cerca de 50 mil habitantes, teve como primeiro Chefe de Polícia nomeado pelo império o Juiz Policarpo Leão, natural da Bahia.
O Chefe de Polícia nomeado para uma Província deveria ser auxiliado por Delegados e Subdelegados, os quais detinham poderes para expedir mandados de busca, conceder fiança, julgar crimes comuns, dentre outras atribuições atualmente exclusivas de juízes. O Chefe de Polícia era selecionado entre os desembargadores e juízes de Direito.
Esse sistema perdurou até o advento da lei n° 2.033, de 20.09.1871, norma que dispôs sobre a organização judiciária no Brasil, regulamentada pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro desse mesmo ano, quando ocorreu a separação entre a Polícia e o Judiciário. Polícia e Judiciário passaram a constituir-se em instituições distintas e com carreiras próprias, ficando o exercício dos cargos policiais incompatíveis com os de magistrados. Dessa separação entre Polícia e Judiciário resultaram certas inovações legais, dentre elas o chamado Inquérito Policial, conforme estabelecido na citada Lei nº 2.033/1871.
A instalação da forma de governo republicana, no Brasil, em lugar da monárquica, concedeu aos estados membros, de acordo com o art. 5º do Decreto 1º de 15/11/1889, autorização para dispor de medidas para manutenção da ordem e da segurança pública, defesa e garantia da liberdade e dos direitos dos cidadãos, quer nacionais quer estrangeiros. Do mesmo modo, o art. 8º deste primeiro Decreto republicano concedeu autonomia aos estados para organizar uma guarda cívica.
O Governo Provisório Republicano teve como uma de suas primeiras medidas a revisão do Código Criminal (1890) e a reforma judiciária do país, o que contribuiu para a reformulação dos rumos da segurança pública, como também das atribuições das polícias civis, agora responsabilidade outorgada aos estados. Nesse sentido, a Constituição de 1891 ampliou essa autonomia conferida aos estados membros para legislar sobre a matéria de segurança pública e sobre a polícia. Cada Estado da recente República brasileira passou, então, a organizar sua própria polícia.
Ao longo do século passado – XX, a Polícia serviu aos diferentes regimes políticos, fossem abertos ou fechados, incorporando características de cada momento histórico e se moldando aos interesses dos gestores da administração pública que dirigiam o Estado brasileiro. No último contexto de centralização administrativa e fechamento político, imposto a partir de 1964, não ficou imune ao processo e contraiu traços desse cenário, que ainda afetam sua imagem nos dias atuais. Entretanto, procura amoldar-se aos tempos de pluralismo político e abertura à cidadania, adequando-se aos diferentes cenários de participação popular, inclusive a partir de redes sociais virtualizadas, e manifestações cívicas da sociedade nacional dos tempos atuais.
A Constituição Federal de 1988 tratou de definir as atribuições das polícias federais e estaduais. No âmbito dos estados, estabeleceu as distintas finalidades e funções das polícias civis e militares. Em ambas, o ingresso dá-se via concurso público. A formação exigida é definida de acordo com o edital, salvo ao cargo de Delegado de Polícia, cuja exigência básica é a graduação no curso de Direito, uma vez pertencerem eles aos quadros das carreiras jurídicas de Estado.
À Polícia Civil ou Judiciária atribui-se a investigação da materialidade e da autoria dos delitos, exceto as infrações penais militares, a fim de que se possa fornecer elementos para a denúncia, a ser feita ou não pelos membros do Ministério Público junto ao Judiciário, que poderá aceitá-la ou não. Cumpre também à Polícia Civil o planejamento, a coordenação, a direção e execução das ações de polícia judiciária, no curso da apuração das infrações penais, que consistem na produção e na realização de inquérito policial e de outros atos formais de investigações. Cabe ainda à Polícia Civil: cumprir mandados de prisão e de busca domiciliar, como também outras ordens expedidas pelo juiz competente, desde que de acordo com as atribuições desta Polícia; realizar pericias oficiais e exames complementares; apreender materiais, instrumentos e produtos de infração penal; e realizar serviços de identificação civil e criminal. A administração da Polícia Civil, nos estados, compete ao Delegado de Polícia de carreira, conforme dispõe a Constituição Federal e cada uma das respectivas Constituições estaduais.
A Polícia Militar é encarregada do policiamento ostensivo preventivo, com vistas à preservação da ordem pública, e da polícia judiciária militar, nos termos da lei federal, além de se constituir em força auxiliar e reserva do exército brasileiro. Em regra, o comando das polícias militares dos estados incumbe a um oficial dentre os de patente mais alta, pertencente aos quadros da própria corporação estadual.
Como noutras carreiras, ser policial tem seus desafios e riscos. Contudo, na atividade policial, esses riscos quase sempre são potencializados. Ao ingressar na carreira, o policial, civil ou militar, tem ciência disso. Contudo, isso não desobriga o estado a ter políticas mais eficazes de seguro para o profissional da segurança pública, além da política geral de seguridade social que adota. Dentre os desafios a superar ao longo da carreira policial e nas instituições, pode-se mencionar: lidar cotidianamente com ocorrências de violência e fatos de conturbação social sem adoecer, embrutecer nem corromper; evitar abusar da autoridade que exerce por dever legal; agir sempre conforme as leis e em respeito aos superiores hierárquicos; combater a corrupção dentro e fora da corporação; e ter ciência que sua conduta profissional é sempre um balizador para a sociedade.
Por fim, as Polícias no Brasil estão em processo de transformação e diversos temas estão na agenda dos governos estaduais e federal, tais como: valorização da carreira policial, autonomia da polícia judiciária em relação Poder Executivo, desmilitarização da polícia ostensiva, unificação das polícias, municipalização da segurança pública, atuação policial diante de manifestações populares, de facções criminosas, de organizações criminosas, participação efetiva num sistema único de segurança pública e outras relevantes questões de significativo impacto à história das Polícias brasileiras. Uma história em plena dinâmica de transformação. E desde há muito a ser pensada, reconstruída e contada em prol da cidadania e da segurança da própria sociedade. Talvez assim não seja mais necessário a história da Polícia “pegar carona” nem apoiar-se noutros dignos acontecimentos ou heróis da história nacional, sob as bênçãos da oficialidade administrativa dos gestores estatais.
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