Ainda é madrugada, mas, aos poucos, as luzes das pequenas casas da comunidade Divino Espírito Santo do Izidoro, no Lago Coari, já estão acesas. É a comunidade das Marias: Maria Aparecida, Maria Antônia, Maria de Fátima, Maria do Socorro, Maria das Graças… As muitas Marias rumam cedo para a casa de farinha.
Ainda é escuro quando começam os trabalhos. A casa de farinha representa não apenas um lugar físico, mas, sobretudo, um espaço social, cultural e político criado e mantido pelas Mulheres da Floresta. Cada uma tem uma função específica e se especializa numa determinada técnica na divisão social do trabalho na casa de farinha. Uma determinada Maria chega sempre primeiro e, trata logo de reativar o fogo que ainda fumega desde noite anterior.
Esta Maria é quem distribui os trabalhos e logo ordena à segunda Maria que vem chegando para peneirar a goma ainda fresca e preparar a tapioca para o café da manhã. Logo o aroma do café toma conta da casa de farinha. Cada uma que chega vai se acomodando nos diversos espaços para tomar café com tapioca. Algumas trazem tucumã fatiado para acrescentar à tapioca. Outras chegam trazendo banana frita. Logo o momento do café vira uma festa de partilha e celebração da amizade entre as mulheres. Alguns homens também se aproximam para tomar café com tapioca e somar-se aos trabalhos.
A linha de produção já está montada e logo começa a funcionar. Algumas já estão peneirando a massa que passou a noite pendurada no tipiti. Prensada, a massa está quase seca, no ponto para ser torrada. O forno, grande tacho aberto com 2.600 mm no fundo com uma inclinação de aproximadamente 45 graus nas bordas com altura medindo 10 cm, já está bem aquecido e, aos poucos as Marias vão jogando a massa peneirada para dentro. Duas Marias se revezam para revirar a massa que aos poucos vai ganhando a textura e o aroma da farinha torrada, amarelinha e crocante. A fumaça é intensa e os olhos não param de lacrimejar. Com pás de madeira com cabo de quase dois metros de comprimento, as Marias jogam a farinha para o alto de forma sincronizada. Logo fica pronta a primeira fornada, quase três latas de farinha. Mais ou menos 50 kg.
Enquanto isso, outras Marias estão cevando as mandiocas recém descascadas por um batalhão de trabalhadores e trabalhadoras com idade entre 4 e 87 anos. A menorzinha nem consegue segurar a faca, mas, já está sendo ensaiada na linha de produção num contexto em que a tradição da farinha é passada de geração em geração. Enquanto isso, os rapazes mergulham às margens do Lago Coari para retirar os sacos com a mandioca que está de molho há uma semana para preparar a farinha d’água.
Todo o processo de fabricação da farinha e de outros derivados da mandioca é totalmente manual e vai desde o plantio e cultivo da maniva (trabalho das mulheres), depois arrancam as mandiocas com as próprias mãos (este é um trabalho que envolve mais os homens por representar a finalização do ciclo de vida da mandioca) e as transportam para casa de farinha onde são descascadas, raladas ou colocadas de molho por uma semana. Na sequência, a massa é prensada no tipiti, em seguida peneirada e torrada. O processo envolve diversas técnicas herdadas dos povos indígenas da região.
No locus da casa de farinha, a mandioca e seus derivados, especialmente a farinha seca e a farinha d’água, o polvilho doce e o azedo, a goma de tapioca e o tucupi são preparados simultaneamente. Cada grupo de Marias se encarrega de uma atividade específica. O preparo da farinha revela algumas peculiaridades da organização social e política e da a produção e reprodução do conhecimento das mulheres da floresta a partir da casa de farinha.
Deste modo, o lugar se converte em locus (lugar por excelência), ou seja, mais que um lugar físico, concreto, real, a casa de farinha alcança novos significados a partir de uma abordagem mais minuciosa de seus significantes. O locus do trabalho realizado em torno da casa de farinha assume o significado da organização das mulheres na divisão social e sexual do trabalho e passa a ser um lugar de tomada de consciência mais ampla de uma nova definição das relações das mulheres da floresta com o trabalho. Por isso, não se pode reduzir o significado da casa de farinha como uma extensão do ambiente doméstico. O nível político das relações de trabalho desenvolvido na casa de farinha durante todo o ano a definem como o locus da organização social e das diversas formas de participação política das mulheres muito diferente das relações de dominação e controle vivenciadas no ambiente doméstico.
A casa de farinha é um locus de referência para os encontros e reuniões, que podem ocorrer durante os trabalhos do cultivo da mandioca ou da produção da farinha que envolve a comunidade durante o ano inteiro. A casa de farinha também é o locus da produção do artesanato relacionado com os utensílios utilizados na produção da farinha que implica na confecção de paneiros, peneiras, tipitis, vasilhas de madeira, fornalha e muitas outras ferramentas de trabalho. Também é o locus dos encontros e conversas informais que ocorrem quando o grupo chega para se preparar para o trabalho ou no intervalo do almoço. As refeições, especialmente o café da manhã e o almoço, são realizadas coletivamente.
No período da produção da farinha transforma-se no locus por excelência da comunidade porque os grupos permanecem por muitos dias reunidos no mesmo lugar. E nas jornadas mais intensas de trabalho, ela se transforma no locus da festa, do mutirão ou ajuri, da alegria, da troca de experiências, do laser, onde todos se sentem como se estivessem na sua própria casa. Entretanto, ninguém se esquece de que se trata de um locus coletivo de trabalho e convivência. Lugar por excelência de comando das mulheres que sabem organizar e desenvolver os trabalhos, dividir os lucros de forma equitativa, planejar e executar tarefas coletivas, manter o local organizado e em pleno funcionamento.
São essas Marias que lutam e labutam o ano inteiro nas comunidades da Amazônia para dar à farinha nossa de cada dia, um sabor de participação, de alegria, de convivência fraterna e de corresponsabilidade nas relações de trabalho. Verdadeira lição de bem-viver.
(Fragmentos do capítulo V (de minha autoria), publicado no livro O Ethos das Mulheres da Floresta, organizado por Iraildes Caldas Torres, em Manaus, Editora Valer, 2012).
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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