Durante a semana nacional dos migrantes e refugiados, o COMIRR (Comitê para Migrações de Roraima) divulgou uma nota pública em repúdio à xenofobia institucional praticada e instigada pela Assembleia Legislativa do Estado de Roraima.
Num contexto historicamente marcado pelas migrações que constituíram e ainda constituem parte significativa deste estado, declarações como estas são incoerentes e ato grave quando praticadas por agentes públicos em espaços institucionais. A xenofobia institucional contraria a postura solidária e acolhedora da grande maioria da sociedade roraimense que não tem poupado esforços para acolher, compartilhar, cuidar e integrar os migrantes e refugiados que continuam chegando todos os dias e se espalhando por todo continente latino-americano. Como forma de apoio e solidariedade com todas as instituições que assinam a nota de repúdio, decidimos divulgar na íntegra o seu conteúdo que contribui para ampliar nossas reflexões sobre a questão migratória na Pam-Amazônia.
O COMIRR (Comitê para Migrações de Roraima), rede formada por instituições da sociedade civil que acompanham e defendem as pessoas migrantes, diante das manifestações frontalmente contrárias às atribuições constitucionais do Poder Legislativo expressadas pelo “Relatório da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Minorias e Legislação Participativa sobre os impactos no Estado de Roraima, decorrentes da crise migratória venezuelana”, esclarece:
O relatório afirma de forma peremptória que se os impactos da migração não forem “remediados em tempo pelo governo federal” transformarão Roraima no pior estado do Brasil. O medo comum e característico que em geral envolve as comunidades de acolhida nos fluxos migratórios massivos encontra-se explícito nessa assertiva, ao apontar as pessoas migrantes como ameaças e a migração como causa das mazelas na saúde e na segurança. Esses dois aspectos que constituem o núcleo do medo ligado à migração são instigados e reforçados ao longo do documento publicado pelo Legislativo estadual.
Sem indicar as fontes, o relatório menciona piora na prestação dos serviços de saúde em virtude de “conflitos” na fronteira e indica que o estado “já se sufocava com a quantidade de atendimentos hospitalares a estrangeiros”, além de questionar o fato de que o sistema de cadastro do SUS registra a todos como se “brasileiros fossem”.
A Constituição da República, no caput de seu artigo 5º, garante a todas as pessoas brasileiras e estrangeiras residentes no país a inviolabilidade de uma série de direitos considerados fundamentais. Esses direitos não se esgotam nos incisos do artigo 5º, mas se estendem a todo o corpo constitucional e todas as normas garantidoras de direitos fundamentais, como os tratados internacionais ratificados pelo Brasil (artigo 5º, parágrafo 2º). O fato de que todos os direitos fundamentais se aplicam a todas as pessoas que estejam no território brasileiro – ou que sejam atingidas pela legislação brasileira independentemente do vínculo de nacionalidade e de se encontrarem no território – é amplamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal. As únicas exceções à igualdade de direitos decorrentes da nacionalidade são as previstas no próprio texto constitucional e dizem respeito aos direitos políticos, à titularidade de alguns cargos e à propriedade de empresas de comunicação.
Se a Constituição assegura o direito à vida (digna) e à saúde a todas as pessoas que se encontram no Brasil, se migrar e solicitar asilo são direitos humanos, não pode o Poder Legislativo – seja ele de qualquer esfera da federação – estabelecer distinção entre as pessoas que são cadastradas e atendidas pelo SUS. Posicionar-se de forma contrária à universalidade de atendimento do Sistema Único de Saúde é se contrapor às regras e princípios previstos na Constituição e nas leis. Ademais, instigar o descumprimento das normas é tarefa contrária às funções precípuas do Poder Legislativo, a quem cabe a criação e a fiscalização do arcabouço normativo do país.
Além de propugnar por uma inconstitucional, ilegal e imoral diferenciação entre brasileiros e imigrantes no que tange ao cadastro no SUS, o relatório afirma que “cresce a desesperança dos roraimenses”. O que se espera de um relatório elaborado por uma comissão da Assembleia Legislativa de determinado estado é a apresentação de dados oficiais, oriundos de fontes idôneas, com a consequente propositura de ações que garantam a efetividade dos direitos das pessoas. A qual propósito serve uma frase como esta, subjetiva e sem qualquer amparo em dados objetivos ou fontes idôneas, lançada em um relatório de uma comissão parlamentar?
O relatório menciona ainda doenças que já estariam erradicadas do Brasil e teriam sido (re)introduzidas no território pela população venezuelana. Curiosamente, dentre as doenças citadas o Legislativo estadual elenca aquelas que, além de não estarem erradicadas, são transmitidas por vetores e combatidas por meio de políticas públicas adequadas. O fato de estarmos em 2019 e ainda sofrermos com enfermidades como febre amarela, dengue, malária e zika vírus reflete problemas estruturais do país que certamente não foram trazidos pelas pessoas migrantes.
A falta de leitos em Roraima – assim como vários outros aspectos deficitários das políticas públicas do estado – vem sendo denunciada há anos e parece que os poderes públicos encontraram agora uma desculpa apta a justificar sua incompetência sistêmica e insensibilidade social.
No que tange à educação, o relatório mantém o “argumento” relacionado à saúde, ao afirmar que as vagas “deveriam serem ofertadas a brasileiros” (sic).
Como dito alhures, os direitos fundamentais aplicam-se a todas as pessoas independentemente de sua nacionalidade. Estabelecer critério discriminatório à admissão de crianças e adolescentes nas escolas de Roraima violaria não só o direito à educação previsto na Constituição do Brasil, mas também o acesso a direitos das pessoas migrantes, solicitantes de refúgio e refugiadas.
O relatório apresenta o número de alunos matriculados como se este fosse um problema, mas o que cabe recordar ao Poder Legislativo é que o problema é a falta de acesso ao ensino público e a incompetência do estado para acolher novos estudantes e respeitar suas diferenças linguísticas e culturais, reconhecendo-as como oportunidades de crescimento e enriquecimento para toda a comunidade.
A “insegurança generalizada” é mencionada de forma subjetiva no relatório, que não apontou nenhuma pesquisa fiável ou dados oficiais e reforça um dos pilares que sustentam a xenofobia no mundo. O relatório dissemina o medo e o preconceito ao afirmar que “os roraimenses estão reféns em suas próprias casas, não gozando mais da rotina pacata que se via há algum tempo atrás” (sic). Essa é uma afirmação grave que induz a insegurança e, ao invés de se fundamentar em dados objetivos sobre a segurança pública em Roraima, sustenta-se em afirmação totalmente equivocada e contrária ao Direito Internacional. O relatório afirma que “o Brasil não vem exercendo sua soberania ao não selecionar as pessoas que ingressam em Roraima vindo da Venezuela” (sic). O equívoco dessa premissa não se restringe à ultrapassada noção de soberania, mas também envolve desconhecimento relativo ao direito à migração, à igualdade de tratamento e o princípio da não discriminação. O Brasil não pode “selecionar” as pessoas que chegam pois, se o fizesse, violaria direitos e poderia inclusive ser responsabilizado em instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos.
É contraditório que uma comissão de direitos humanos e minorias faça apologia à violação de direitos reconhecidos em diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como de princípios expressos na Constituição. A “seleção” das pessoas que pode(ria)m entrar no país viola(ria) frontalmente o direito de migrar e o direito a solicitar e receber asilo, além de constituir ato discriminatório.
O relatório chega ao ponto de afirmar que a mídia não expressa a realidade e que “vários brasileiros já foram assassinados por venezuelanos”. Afirmação tão grave só poderia ser feita com fundamento em dados oficiais e se presta à disseminação do medo e do preconceito, apontando as pessoas que chegam como criminosas.
A segurança é sempre ponto sensível em relação a qualquer fenômeno migratório, pois é a seara em que a manipulação do medo é mais óbvia e explícita em detrimento dos direitos das pessoas que migram.
O relatório parece contrapor as pessoas migrantes e nacionais em relação à titularidade de direitos, dentre os quais o da vida digna. Tempos difíceis esses em que temos de (re)afirmar o óbvio: todos somos iguais em dignidade e direitos. Nacionalidade e origem não constituem causas legítimas à diferenciação.
Ao contrário do que afirma o documento ora analisado, a população de Roraima não vem sendo esquecida em detrimento do povo venezuelano. As políticas públicas que garantem os direitos sociais devem ser fortalecidas no estado independentemente da chegada de imigrantes e solicitantes de refúgio, já que garantir a efetividade dos direitos fundamentais de pessoas que sofrem grave e generalizada violação de direitos humanos é obrigação do Estado brasileiro.
Este Comitê já se manifestou em virtude da violência praticada contra as pessoas venezuelanas em Roraima e novamente é instado a se manifestar, dessa vez em razão de relatório elaborado por comissão que deve(ria) defender direitos humanos e minorias.
É necessária muita violência institucional para que a população de determinado local se sinta assegurada e até mesmo compelida a praticar atos xenófobos. Declarações equivocadas e tendenciosas como as que foram feitas no relatório produzido pelo Poder Legislativo constituem esse indesejável e lamentável amparo à violência, pois reforçam mitos concernentes à migração, induzem medo e instigam preconceito.
A função do Poder Legislativo – sobretudo de uma comissão que trata de direitos humanos, minorias e legislação participativa – é promover o diálogo, disseminar informações verdadeiras, criar normas e planejar políticas públicas que respeitem os direitos humanos previstos e protegidos em tratados internacionais e na Constituição do país.
Diante do exposto, o COMIRR manifesta seu repúdio às afirmações formuladas pelos parlamentares de Roraima que, no exercício de mandato popular, instigam o preconceito e se eximem de suas responsabilidades de garantia dos direitos de todas as pessoas, independentemente de sua origem ou nacionalidade.
Em comum acordo assinam:
Cáritas Diocesana de Roraima
Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima – CMDH
Congregação das irmãs Catequistas Franciscanas – Província Ir. Cléglia Anesi
Conselho Indígena de Roraima – CIRR
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Congregação das Missionárias de São Carlos Borromeu Scalabrinianas
Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteira – GEIFRON/UFRR
Instituto Migrações e Direitos humanos – IMDH
Pastoral Indigenista de Roraima – PIRR
Pastoral Universitária de Roraima – PURR
Projeto Português para o Acolhimento – Universidade Federal de Roraima
Rede Eclesial Pam-Amazônica – REPAM/RR
Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados – SJMR
Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.