Do ATUAL, com informações do Itaú Cultural
SÃO PAULO – Divisor de águas na história da literatura brasileira, Machado de Assis inspirou as gerações de escritores que o sucederam. Sua vida e obra estarão à disposição do público de todo o Brasil na 61ª Ocupação Itaú Cultural, em São Paulo, que terá a versão física e online, a partir do dia 18.
Machado de Assis escrevia sobre as características da sociedade brasileira e deixou em suas páginas um fiel retrato historiográfico da formação do Brasil.
Acompanham a ocupação, uma publicação impressa e conteúdos exclusivos no site do Itaú Cultura, além de marcar o lançamento da coleção Todos os livros de Machado de Assis, projeto em parceria da editora Todavia e o Itaú Cultural.
Diálogo com o hoje evidencia criação, criaturas e criador
Mostra comprova que a obra machadiana, construída entre romances, contos, poemas, crônicas, peças de teatro e artigos, continua sendo leitura viva. Legado literário do autor mobiliza e tensiona temas como a ética, a comunhão de interesses, as ordens de arranjos e caprichos, as paixões, a identificação social e a identidade do sujeito.
Estamos diante de narrativas orgânicas enquanto composição, de textos que bem sustentam impasses, que armam debates não estabilizados, livram-se de obviedades, desmontam frases feitas e, de modo irônico, desdenham de questões absolutas.
Estamos diante da produção de Machado de Assis, o grande escritor de todos nós, cujo legado – para a literatura e além dela – é festejado na 61ª Ocupação Itaú Cultural. Celebrar o mestre das letras corresponde, ao mesmo tempo, a um dever e um direito da nossa gente.
Menino de 1839 e do Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, então capital do país, Joaquim Maria Machado de Assis estreou como autor em 1864, com os versos de Crisálidas. Do primeiro até o último volume, Memorial de Aires (1908), publicado no ano de sua morte, o ficcionista construiu uma obra rica em gêneros – romances, contos, poemas, crônicas, peças de teatro, artigos –, na qual os fatos (problemáticos) são tudo e os valores, relativos.
A escrita machadiana mobiliza e tensiona temas como a ética, a comunhão de interesses, as ordens de arranjos e caprichos, as paixões, a identificação social e a identidade do sujeito, despertando leitores com farpas ritmadas. Essas farpas, aliás, também aparecem aqui, em uma mostra que busca colocar as palavras do artista em diálogo com o hoje, evidenciando criação, criaturas e criador.
Desdobrada em uma publicação impressa e no site www.itaucultural.org.br/ocupacao (com conteúdo exclusivo), a Ocupação Machado de Assis enfatiza a negritude do homenageado por meio de entrevistas com estudiosos e outras pessoas que visitaram o universo do escritor. O projeto reúne documentos, objetos e livros, itens que, juntos, indicam que o Bruxo do Cosme Velho continua sendo leitura viva. Cada vez mais viva.
Obra machadiana em plurais possibilidades de leitura
Professor no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e de literatura de autoria negra na Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio, Henrique Marques Samyn escreveu para a publicação da mostra sobre os muitos Machados e as variadas leituras que se pode fazer dele e de sua obra fundamental na cultura brasileira.
A impossibilidade de construção de uma resposta imediata (ou mesmo sintética) a questionamentos acerca da importância de Machado de Assis para a cultura brasileira se deve, desde o princípio, às dificuldades de determinar de que Machado se trata. Trata-se do ficcionista que forjou sua carreira “resistindo ao meio” e vencendo o “próprio temperamento”, no dizer do crítico Araripe Júnior – portanto, afirmando a sua singularidade contra si mesmo e o mundo em que vivia? Trata-se do Machado “grego” e embranquecido, apartado da própria condição “mulata”, para recuperar as palavras do escritor José Veríssimo e do jurista Joaquim Nabuco? Trata-se do “moleque Machadinho”, de reconhecíveis origens “mestiças” e pobres, presente nos textos biográficos da ensaísta Lúcia Miguel Pereira e do autor Monteiro Lobato – que teria, não obstante, voltado as costas à própria raça, consoante as (muito citadas, mas provavelmente jamais proferidas) palavras do jornalista José do Patrocínio? Ou se trata, enfim, do mestre derradeiramente devolvido à negritude, já por volta do seu centenário de morte, pela crítica e pela militância negra?
De fato, é possível falar sobre muitos “Machados” – em parte, devido a lacunas que persistem acerca da trajetória biográfica do escritor, sobretudo no que diz respeito aos seus anos de formação, e que tantas conjecturas têm suscitado. Todavia, importa ressaltar que a essa multiplicidade correspondem as plurais possibilidades de leitura propiciadas pela própria produção machadiana – ou seja, pela lavra legada por um escritor e crítico notório pela versatilidade, especialmente hábil no manejo de ambivalências, silêncios e entrelinhas. Assim se explica a interminável profusão de comentários, textos críticos, ensaios e estudos acadêmicos produzidos em torno das obras de Machado de Assis, desde o terceiro quartel do Oitocentos, quando o escritor ainda vivia, até a contemporaneidade; e que está seguramente destinada a perpetuar-se.
A pena machadiana foi responsável, afinal, por criar personagens que se tornariam centrais em nosso imaginário coletivo, como a Capitu dos “olhos de ressaca” – que tanto fascinou e continua a fascinar escritoras e escritores, cineastas e artistas; por produzir figuras que operam como alegorias para a nação – como o “gira” Rubião, personagem que a crítica sugeria, já no século XIX, representar o Brasil; e por elaborar narrativas que propõem persistentes questionamentos acerca do que fazemos de nós mesmos e da sociedade em que vivemos – como “O alienista” e “Teoria do medalhão”. Assim é que nós, escritoras e escritores, convivemos com Machado de Assis, conscientemente ou não; e não raramente estabelecemos um diálogo com a sua obra, ainda que nem sempre de maneira deliberada – em alguns casos, como uma forma de ostensivamente render preito ao maior nome da literatura brasileira; em outros casos, como um reconhecimento da atualidade de sua produção literária e de suas infinitas possibilidades de reinscrição no tempo presente.
A Ocupação Machado de Assis favorece a ampliação desse território de múltiplas reescrituras, oportunizando a (re)criação de – ou a reflexão sobre – personagens e narrativas por reconhecidos nomes da literatura brasileira contemporânea. Micheliny Verunschk concede voz a Quincas Borba, cão homônimo do defunto filósofo que dá título ao livro, que dialoga com o leitor “em pelo, rabo e oratória” – não se furtando a ironizar o “Humanitismo”. Esmeralda Ribeiro escreve uma carta para Marcela, personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas, questionando os limites de seu comportamento transgressor a partir de uma perspectiva interseccional. Cidinha da Silva retorna ao conto “Pai contra mãe” para propor um questionamento sobre a função de Clara, personagem “bruma” habilmente criada pelas “maquinações” do Bruxo do Cosme Velho. Ana Paula Maia cria uma Capitu que, antecipando os riscos decorrentes do ciúme, não hesita em tomar drásticas providências para eliminar as ameaças. Marco Lucchesi assume o lugar do Dr. Simão Bacamarte para produzir um texto fragmentário-aforismático que, para além do tempo, pondera sobre a razão, a política e suas fronteiras.
Nada mais propício para evidenciar a perene contemporaneidade da obra machadiana do que instigar à sua revisitação, oferecendo um vislumbre de como, para escritoras e escritores, seus textos constituem um território e um repertório sempre prolíferos. Leiamos, portanto, estas páginas com a disposição necessária para perceber o quanto a cultura brasileira é, ainda, ocupada pelo velho bruxo.
Coleção inédita reúne tudo o que Machado escreveu e publicou em livro
Com lançamento no dia da abertura da ocupação dedicada ao autor, Todos os livros de Machado de Assis é um projeto realizado pela editora Todavia e o Itaú Cultural e idealizado por Hélio de Seixas Guimarães. Ela reúne 25 volumes e um extra, entre poesia, teatro, conto e romance com tudo o que o autor escreveu e publicou em livro.
A coleção Todos os livros de Machado de Assis reúne todas as publicações que o autor escreveu e editou em vida, mantendo a sua dicção. Com texto estabelecido a partir de edições revistas pelo autor, apresentações inéditas para cada livro e projeto gráfico que se inspira na tipografia das edições originais, a caixa amplia as leituras possíveis dessa obra desafiadora até hoje. A coleção resulta de um intenso processo de pesquisa e edição que durou quatro anos e foi desenvolvido por uma equipe de mais de 20 pessoas, entre designers, leitores críticos, preparadores, consultores, revisores técnicos, editores e outros.
Com edição da Todavia em parceria com o Itaú Cultural e idealização de Hélio de Seixas Guimarães, professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, pesquisador do CNPq, especialista na obra do escritor e vice-diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Todos os livros de Machado de Assis tem lançamento na data da abertura da Ocupação Machado de Assis. Os 500 exemplares iniciais já podem ser adquiridos nas livrarias, sendo que, nesse primeiro momento, a editora os vende unicamente por meio de uma caixa especial. A partir do primeiro semestre de 2024, os títulos serão comercializados separadamente.
A coleção contém as obras-primas que Machado produziu em todos os gêneros que praticou, mas ressalta também a trajetória do escritor, pelo teatro e pela poesia, pelos contos e romances iniciais, até chegar às alturas a que chegou. Segundo Guimarães, em vez de destacar apenas os grandes resultados, o conjunto ressalta também o processo.
Da estreia, em 1861, com a peça Desencantos, ao último romance, Memorial de Aires, de 1908, a coleção reúne 25 volumes em ordem cronológica, que permitem observar o percurso de Machado até se tornar o autor de alguns dos maiores clássicos brasileiros. Há também um volume extra, Terras, testemunho de seu trabalho como servidor público, função que exerceu por mais de quarenta anos, tratando de questões cruciais para o país.
O leitor acompanha aspectos importantes em sua obra – as relações e questões de gênero, classe e raça, por exemplo – que se apresentam e se transformam ao longo do tempo e se fazem presentes nos vários gêneros que praticou: teatro, poesia, conto, romance, crônica e crítica. Em toda a coleção, as anotações sobre a presença da questão racial nos escritos de Machado de Assis ficaram a cargo de Paulo Dutra, professor na Universidade do Novo México (EUA) e consultor da coleção.
A ortografia de todos os volumes está atualizada, com indicação, nos aparatos críticos, das variantes ainda admitidas na língua e registradas no Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, como cousas, prescrutador, tacto, subtil. A pontuação do escritor foi respeitada, mesmo quando soa estranha para o leitor de hoje, uma vez que ela responde muitas vezes a critérios expressivos, como hesitações, ênfases, ironia, e não apenas a critérios lógico-sintáticos, em grande medida estabelecidos depois que o escritor produziu e publicou seus livros.