Ao ver alguém sofrendo, o sentimento esperado é o de compaixão. Acompanhado, claro, do interesse genuíno de ajudar.
O fato é que as questões humanas nem sempre são simples e lógicas e as situações costumam ter contextos bem específicos e singulares. Assim, dependendo de quem esteja sofrendo e do que ela já fez, em vez de intensa pena, o sentimento despertado pode ser até de profunda alegria.
Muita gente jamais admitiria isso em voz alta, mas essa particular emoção existe. Um povo que passou por muitos conflitos até criou uma palavra para descrever esse peculiar sentimento. Os alemães criaram a palavra ‘schadenfreude’ cujo significado é a ‘alegria e prazer pelo sofrimento e infelicidade alheia’.
A expressão vem da junção de duas palavras: schaden (dano, prejuízo) e freude (alegria, prazer). A pronúncia, difícil para nativos em português, é algo próximo a ‘shadanfrroida’.
Antes, porém, que algum compatriota imagine alguma superioridade moral nossa por não termos uma palavra para designar esse tipo de sentimento, é bom lembrar que existe uma canção brasileira muito popular que expressa com exatidão o que é ‘schadenfreude’: a música ‘Vou festejar’.
O samba composto, em 1978, por Neoci, Dida e Jorge Aragão provavelmente é a canção mais eufórica, contagiante e ‘solar’ da música brasileira. Muito cantada em aniversários e festas de fim de ano sempre com muito entusiasmo e alegria que talvez surpreendesse um estrangeiro, inclusive um alemão adepto do schadenfreude, caso ele soubesse o real conteúdo dos versos.
Curioso é que a letra é a maior responsável pelo sucesso permanente dessa música nas arquibancadas dos estádios brasileiros. Em momentos de triunfo, as torcidas de futebol adoram cantar para os adversários versos como: “Chora, não vou ligar. Chegou a hora. Vais me pagar. Pode chorar, pode chorar”.
E para aqueles jogadores que saem do time e vão para o clube rival, a canção também possui versos específicos: “Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão”.
No futebol, o que os alemães chamam de schadenfreude, os torcedores chamam de ‘secar o adversário’. Tudo para que, em caso de derrota dos ‘contrários’, seja possível cantar: “Vou festejar, vou festejar. O teu sofrer, o teu penar”.
Nas Eliminatórias Sul-americanas para a Copa de 2018, na Rússia, encerradas nesta terça-feira, 10, muitos brasileiros estavam justamente preparando-se para entoar ‘Vou festejar’ por causa da Argentina. E o motivo não é porque a música foi feita no mesmo ano em que nossos vizinhos ganharam (com várias suspeitas) a primeira Copa deles. É porque o time ‘malvado favorito’ do Brasil estava em risco de não ir para o Mundial. Graças ao craque Messi, porém, a Argentina derrotou o Equador (3 a1) e os ‘Hermanos’ conseguiram uma vaga. O sentimento de schadenfreude, por agora, está adiado.
Há algum tempo atrás, a principal intérprete da música, a cantora Beth Carvalho não gostou do fato de ‘Vou festejar’ ser cantada a plenos pulmões em protestos contra políticos da preferência da artista. Ela afirmou que não autorizava o uso da canção.
A questão é que agora a música é do povo. Não é necessário o carimbo de homologação ou deferimento de ninguém. O ideal, aliás, é que os brasileiros tenham, pelo menos de vez em quando, motivos além do futebol para o momento de desaforo propiciados por músicas como ‘Vou festejar’. Seria até muito desejável que tais motivos viessem da política e de outras esferas do poder.
Os compositores da canção chamam a situação de ‘castigo’. Para muitos brasileiros, entretanto, a circunstância em que, enfim, os ‘maus’ choram e sofrem também pode ser chamada de ‘justiça’.
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