Por Sérgio Rodrigues, da Folhapress
RIO DE JANEIRO-RJ – O pronome ‘they’ (eles-elas em inglês) empregado no singular é a palavra do ano do dicionário Merriam-Webster. Refere-se a pessoas que repudiam tanto o gênero masculino quanto o feminino, identificando-se como ‘não binárias’.
O dicionário não diz que ‘they’ foi a palavra com o maior número de consultas online de 2019. Foi a que mais cresceu: o tráfego gerado pelo pronome subiu 313% em relação ao ano anterior.
É impossível traduzir esse ‘they’ para o português sem trair o espírito da coisa. Nosso idioma neolatino adora palavras com gênero e carrega o masculino e o feminino do singular para o plural.
Mesmo que falte a adesão de outros dicionários importantes, o reconhecimento que o tradicional Merriam-Webster faz do ‘they’ singular (o verbo continua sendo ‘are’, não ‘is’) é fruto de uma transformação dramática no modo como o Ocidente compreende o gênero e a sexualidade.
Virar palavra do ano não é um feito que costume estar ao alcance de termo tão onipresente quanto um pronome pessoal em pleno uso, firme em seus oito séculos de idade. O que houve foi que o velho ‘they’ expandiu seus domínios gramaticais para invadir o singular, e isso é um evento raro.
O impacto gramatical de uma mudança social e política, ainda mais em palavra tão básica, não ocorre todo dia. O ‘they’ singular foi dicionarizado porque um número suficiente de pessoas passou a dizer que assim queriam ser chamadas. E um número maior atendeu.
O pronome não é ‘pessoal’? Então: os não binários se reservam o direito de dizer como o mundo deve se dirigir às suas pessoas, mesmo que para isso incorram no que ouvidos conservadores classificam como erro de gramática. “Não há dúvida de que seu uso [do ‘they’ singular] está estabelecido na língua inglesa”, garante o Merriam-Webster, que passou a registrar o novato em setembro.
O espírito rebelde de ‘they’ vem de longe. A canção ‘If You Love Somebody (Set Them Free)’, de Sting, é um exemplo de seu improviso como pronome pessoal singular neutro. A canção é de 1985. O uso, diz o dicionário, tem perto de seis séculos.
O Merriam-Webster destaca a presença crescente do novo ‘they’ em material impresso, redes sociais e conversas. Conta que a deputada americana Pramila Jayapal revelou em abril ser mãe de uma criança não binária que ela trata por ‘they’, enquanto o cantor inglês Sam Smith anunciou em setembro que quer ser chamado assim.
Além disso, a American Psychological Association recomendou o pronome como preferível a ‘he or she’ na escrita profissional, quando se tratar de alguém de gênero ignorado ou que assim queira ser tratado.
Muitos conservadores dizem que não pode: é certo que uma parte do sucesso online da palavra se deve a gente indignada, embora o dicionário não saiba ou não revele os percentuais pró e contra.
Pode-se apostar que grande parte do interesse por ‘they’ é de falantes nem pró nem contra, mas curiosos e confusos com o dinamismo da língua.