Por Anna Virginia Balloussier, da Folhapress
RIO DE JANEIRO – As guerras culturais espalharam bárbaros por toda parte, e as igrejas cometem um grande erro ao se envolverem nessas batalhas, diz o teólogo croata Miroslav Volf, fundador do Centro de Fé e Cultura da Universidade Yale.
Volf atualiza um clássico seu, “Exclusão e Abraço”, lançado primeiro em 1996 e reeditado para caber no espírito do nosso tempo. No Brasil, será publicado pela editora Mundo Cristão.
À reportagem o teólogo fala sobre o bom samaritanismo que, hoje, significa abrir mão de reuniões religiosas presenciais para deter a Covid. “Insistir em adorar pessoalmente é insistir em prejudicar nossos vizinhos”.
Confira a entrevista.
Pergunta – O sr. lançou “Exclusão e Abraço” há 25 anos. De lá para cá, que metade desse binômio prevaleceu?
Miroslav Volf – Quando escrevi o livro, o mundo se globalizava rapidamente após a queda do mundo bipolar (da Guerra Fria). Conflitos identitários não eram raros, mas aconteciam nas bordas. Quando descambaram para confrontos abertos, o Ocidente muitas vezes os vivenciou como barbárie subcivilizacional. Hoje a política identitária é uma realidade global. “Bárbaros” estão por toda parte, para usar o vocabulário que geralmente desaprovo.
Por quê?
MV – Não quero cravar que a maior parte da política identitária de direita seja expressão de uma luta anticivilizacional. Exceto pelo extremo disso, é um ponto de vista moral. Discordo profundamente, mas não quero desumanizar quem acredita nisso.
O sr. levantou em 1996 meios para evitar o extremismo. O mundo teve sucesso nesse ponto?
MV – O extremismo abunda. Os EUA, que desde a sua fundação foram um farol de democracia, tiveram até recentemente um presidente profundamente antidemocrático, o sr. (Donald) Trump, que perseguia não apenas políticas do tipo “América primeiro”, mas “América branca primeiro”. O país continua dividido.
O que o slogan trumpista “Make America Great Again”, que o sr. cita no prefácio, diz sobre nossos tempos?
MV – Que nos preocupamos apenas conosco. Não é tão supremacista quanto “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo, adotado pelo nazismo), mas não está muito atrás. Não há nada de cristão nisso, embora muitos devotos o tenham abraçado. A fé cristã é um credo universalista, o que significa que Deus cuida de cada humano igualmente. Um cidadão não é como um operador de Wall Street que exige o melhor negócio para si e para seus acionistas, não importa o que aconteça com as outras pessoas.
E quanto ao Brasil?
MV – Visitei o país apenas uma vez, em 2018. Você pode imaginar que minha percepção do que está acontecendo política, econômica e culturalmente por aí é limitada. Mas, vendo de fora, parece estranhamente semelhante à situação nos EUA (sob Trump).
Neste contexto polarizado, a religião pode semear discórdia?
MV – Ao longo dos séculos, as religiões desempenharam papéis contraditórios. O cristianismo, por exemplo, deu origem ao humanitarismo como o conhecemos, mas também legitimou a colonização de povos, abençoou guerras e agiu de formas que entram em contradição com a missão de Jesus Cristo. O argumento do meu livro é que no cerne dessa fé estão os recursos para uma “política de abraço”.
Qual seria ela?
MV – Uso abraçar como metáfora para a parábola do filho pródigo, que ilustra tanto o caráter de Deus que cristãos devem emular quanto a maneira como Ele se relaciona com os rebeldes e os “cidadãos de bem”. Existe um senso de que os inimigos também devem ser amados, mesmo se, e especialmente quando, devemos resistir a eles.
O sr. acha que templos devem continuar abertos em fases mais críticas da pandemia?
MV – Quem frequenta serviços presenciais não se coloca apenas em risco. Infectados nos cultos carregam a Covid para fora. Insistir em adorar pessoalmente é insistir em prejudicar nossos vizinhos. Sei que alguns líderes afirmam que não se reunir causa dano espiritual, o que seria pior do que a morte. Mas persistir nas reuniões quando o vírus está aumentando é moralmente errado. É análogo à justificativa que o sacerdote, na história bíblica do bom samaritano, poderia ter dado para não ajudar o homem ferido à beira do caminho: suas necessidades espirituais urgentes eram mais importantes do que a vida do outro. Jesus, porém, elogiou o samaritano, aquele que deixou de lado suas prioridades por causa do necessitado. Se a pandemia se agravar, vamos ficar em casa e fazer o mesmo.
Quando o Supremo Tribunal Federal determinou que as igrejas permanecessem fechadas se assim governadores e prefeitos decretassem, pastores disseram que a decisão feria a liberdade religiosa. Concorda?
MV – Não acredito. É, ou ao menos deveria ser, uma questão de segurança pública. Para virar discriminação religiosa, um estado ou uma cidade teriam que impôr restrições mais rigorosas a missas e cultos do que a outras atividades públicas ou comerciais comparáveis em relevância. Mas, mesmo sem decretos, as igrejas devem fazer suas próprias deliberações morais guiadas pelo amor ao próximo.
A crise causou muitos cismas na sociedade, em temas como vacina, lockdown e até o uso de máscara. Que lição tiraremos disso?
MV – Espero que seja a de que somos os guardiões de nossos irmãos e irmãs. A atual pandemia é um caso claro em que, trabalhando para o bem dos outros, eu trabalho para o meu.
Qual é a participação dos grupos religiosos na polarização?
MV – Nos EUA, e em parte da Europa, as igrejas têm se envolvido fortemente em guerras culturais. Acho um grande erro. A liderança religiosa pensa que vencer essas batalhas impedirá a secularização e manterá a nação inteira ligada à herança cristã. Estou convicto de que isso não leva ao ressurgimento da religião, mas à secularização. O engajamento político dos cristãos só faz sentido quando temos uma visão social de inspiração cristã, e não quando selecionamos algumas questões (morais) e batalhamos por elas.
O senhor está otimista com o mundo pós-pandemia?
MV – Prefiro não pensar em otimismo e pessimismo, e sim na compreensão judaica e cristã de “esperança” e “desespero”. O otimismo legítimo é baseado na crença de que o presente está grávido de futuro e o dá à luz. Se assim for, temos motivos para nos preocupar. Já a esperança pode existir mesmo nas circunstâncias mais sombrias, mesmo se estamos no marco zero. Quando Jesus estava pendurado na cruz em agonia e vergonha, não havia razão para otimismo. Mas então veio o milagre da ressurreição, e os seguidores de Jesus aprenderam a ter esperança de que coisas impossíveis são possíveis. Bem entendida, a esperança é “uma xícara de café” no momento.
Raio-X
Miroslav Volf, 64
Professor de teologia da Faculdade de Divindade da Universidade Yale (EUA), fundou e dirige o Centro de Fé e Cultura na mesma instituição. Escreveu mais de 20 livros, entre eles ‘Exclusão e Abraço’ (1996, revisado em 2019) e ‘Allah: A Christian Response’ (Alá: Uma Resposta Cristã, em tradução livre; 2011).