Nesta semana foi publicado o relatório sobre as situações análogas ao trabalho escravo no Brasil. Os dados se referem às investigações, fiscalizações, denúncias e procedimentos técnicos realizados pelo departamento de combate ao trabalho escravo no ano de 2019.
O relatório indica o dado alarmante de mais de mil pessoas resgatadas do trabalho escravo no Brasil. Entretanto, este número está muito abaixo dos anos anteriores. Num primeiro momento se poderia pensar que diminuíram as incidências de situações análogas ao trabalho escravo. Entretanto, diante dos cortes orçamentários do departamento encarregado por este trabalho, da redução de pessoal e do rompimento da parceria com a sociedade civil, é possível que os números infelizmente estejam subestimados.
As inspeções/fiscalizações marcadamente técnicas que não contam com parcerias da sociedade civil organizada com grupos de enfrentamento às situações análogas ao trabalho escravo não alcançam os mesmos objetivos. Mesmo que hajam mais denúncias com relação ao ano anterior, são necessárias estratégias de identificação e investigação que envolvem grupos focais no trabalho de formalização das denúncias e acompanhamento das vítimas.
O trabalho de grupos focais como aquele desenvolvido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) é fundamental para efetivar a identificação das situações análogas ao trabalho escravo, do encorajamento e empoderamento das vítimas para formalização e sustentação das denúncias. Nas cidades, parcerias como a do Serviço Pastoral dos Migrantes, caritas e fórum de mulheres são fundamentais. Diante do exposto, conclui-se que dificilmente diminuiu o número de situações análogas ao trabalho escravo. O que pode ter ocorrido foi falha com relação às parcerias com a sociedade civil.
Existem novas modalidades de exploração do trabalho em setores da economia que ainda não estão sendo investigadas. Por exemplo, muitas madeireiras que voltaram a operar na Amazônia, a partir de 2016-2017, não foram e não estão sendo alvo de investigação permanente. As pessoas em situações análogas ao trabalho escravo não denunciam porque sabem-se partícipes de uma modalidade de trabalho extraoficialmente consentida pelo discurso oficial, mas, que, oficialmente, não contam com licenciamento para o funcionamento.
O mesmo ocorre nos milhares de garimpos clandestinos que voltaram a funcionar ilegalmente sob a proteção do discurso oficial. As vítimas não denunciam por medo de serem criminalizadas juntamente com a atividade ilegal a que estão vinculadas. Aliás, a ameaça por parte dos contratantes nestas duas modalidades de trabalho é uma constante e faz parte da estratégia de controle dos trabalhadores/as.
Só para citar um exemplo, no Estado de Roraima não existe absolutamente nenhum trabalhador contratado como garimpeiro. No entanto, esta economia respondeu por relações comerciais importantes no ano de 2019, por exemplo com a Índia, representando o principal produto de exportação do Estado. Isso significa que os milhares de trabalhadores envolvidos nesta economia clandestina não possuem contrato de trabalho e não gozam de nenhum direito trabalhista.
Estas modalidades de exploração do trabalho na Amazônia não são mencionadas. Entretanto elas existem em larga escala e precisam ser investigadas com mais rigor. Para isso, é essencial a parceria com instituições que desenvolvem trabalhos nas bases da sociedade como a CPT e o Conselho indigenista Missionário (CIMI) ou outras instituições indígenas (no caso dos garimpos em áreas indígenas).
As políticas nacionais de enfrentamento ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas dos governos anteriores foi reduzida a um departamento subfinanciado e com falta de pessoal. O aparelhamento do departamento e a contratação, via concurso público, de pessoal qualificado é essencial para melhorar e ampliar os trabalhos, de maneira especial as equipes de campo que atuam diretamente com a fiscalização/inspeção.
Dadas as proporções territoriais do Brasil, o orçamento é essencial para fazer funcionar núcleos em regiões estratégicas como aquelas em regiões de garimpo, madeireiras e grandes fazendas. Da mesma forma é importante manter especial atenção nas cidades onde continuam ocorrendo aliciamento de trabalhadores/as em situações análogas ao trabalho escravo nas confecções, na prestação de serviços na área dos cuidados e doméstico. Além disso, é importante manter as parcerias com as instituições que possuem histórico de colaboração como as citadas anteriormente.
O relatório não deixa claro como tem sido realizado o trabalho de atendimento às vítimas. Trata-se de um trabalho difícil que precisa ser bem articulado em rede entre as instituições oficiais e a sociedade civil. Há instituições que deveriam receber recursos do governo para ampliar seus trabalhos de acompanhamento às vítimas, como o que ocorre com o Serviço Pastoral dos Migrantes, a Cáritas a CPT e o CIMI que acolhem e encaminham muitas vítimas de situações análogas ao trabalho escravo sem receber por isso. São as instituições que mais têm denunciado a exploração dos migrantes, o tráfico de pessoas (neste caso a Rede um Grito pela vida tem realizado um trabalho exemplar) e dado suporte às vítimas, mesmo sem os recursos adequados.
O Brasil precisa melhorar seus esforços para combater o tráfico de pessoas, considerada a escravidão moderna. Para isso, precisa atuar mais na prevenção admitir que é essencial estabelecer parcerias e reconhecer o esforço das organizações da sociedade civil e legitimar/apoiar sua atuação.
O enfrentamento ao tráfico de pessoas passa, necessariamente, pela prevenção que implica num esforço coletivo, num trabalho em rede que envolvam instituições de ensino, veículos de comunicação, instituições da sociedade civil, em conjunto com os órgãos oficiais. Também é indispensável o trabalho do Ministério Público que possui um histórico no enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo no Brasil.
O atendimento e acompanhamento às vítimas representa outro grande desafio. Da mesma forma que a prevenção, a recuperação e reinserção das vítimas depende de um trabalho articulado em rede multidisciplinar. Quanto mais a sociedade estiver atenta e preparada para identificar e denunciar as situações análogas ao trabalho escravo, mais eficiência terão os órgãos e instituições de enfrentamento a este grave delito.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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