Por Alex Sabino, da Folhapress
SÃO PAULO – Torcedores e as redes sociais entraram quase em convulsão quando o brasileiro Keno Marley perdeu para o britânico Benjamin Whittaker. Em um resultado controverso, o boxeador saiu derrotado nas quartas de final das Olimpíadas de Tóquio e ficou sem chances de medalha.
Até integrantes do COB (Comitê Olímpico do Brasil) se irritaram com a decisão dos juízes. A reação de Keno chamou a atenção pela calma.
“Temos muita coisa para desenvolver. Tenho apenas 21 anos, tempo para trabalhar e umas duas Olimpíadas pela frente. Cometi alguns erros e isso acarretou no resultado, mas estou bem feliz com minha performance”, explicou, com o tom de voz sereno.
Seu espírito esportivo foi mais um ponto alto da participação do boxe brasileiro no Japão. O resultado também foi histórico. Foram três medalhas conquistadas: uma de ouro (Hebert Conceição), uma de prata (Bia Ferreira) e uma de bronze (Abner Teixeira). O time em Tóquio era composto por sete atletas.
A reação de Keno e as declarações eloquentes dos outros boxeadores do país na competição foram fruto de trabalho da seleção permanente, mantida pela CBB (Confederação Brasileira de Boxe) e comandada pelo treinador Mateus Alves.
A equipe se reúne para assistir filmes, documentários, é estimulada a ler livros, estar informada sobre o que acontece no mundo e assistir a palestras.
Cinco meses depois das Olimpíadas, Keno concorda que a decisão dos juízes poderia ter sido outra. Mas, como não havia saída, o melhor era aceitá-la e seguir adiante.
“Eu também achei que o resultado foi polêmico. Mas não ia colocar a culpa (pela derrota) no árbitro. Eu tinha de analisar onde errei. Para que eu ia atirar pedra e sem poder mudar o resultado? Eu tinha de começar a me preparar para o próximo torneio”, constata.
Quando palavrões ditos por Hebert Conceição em uma das lutas vazaram no som da TV, Mateus pediu que o atleta os substituísse por “rocambole”. Deu certo até o momento em que ele nocauteou o ucraniano Oleksandr Khyzniak e ficou com a medalha de ouro.
“Minha maior felicidade, além das medalhas, foi a boa impressão que os atletas deixaram nas Olimpíadas. Nossa equipe surpreendeu também pela postura. Todo mundo queria que o Keno culpasse a arbitragem. Ele mostrou muita maturidade para um cara de 21 anos”, elogia o técnico.
“Eu chamo de mente campeã. É um trabalho. Não é só competir, se trata de um aprendizado cultural. A gente estimula que estudem outra língua, leiam. Abner deu todas as entrevistas em inglês. Temos de mostrar que o boxeador não tem de falar errado, sem nível cultural. É outra luta que temos”.
Antes da viagem a Tóquio, Mateus pediu que os atletas assistissem dois episódios da série Loser, sobre atletas que transformaram derrotas em alegrias posteriores. O primeiro foi “Um ex-lutador”, que conta a história de Michael Bentt, boxeador que teve de conviver com um pai abusivo. O outro foi “Julgamento”, sobre a carreira da patinadora francesa negra Surya Bonaly.
“Assistimos muitos documentários que falam sobre racismo. Nossa equipe tem a maioria esmagadora de negros. Lutador não é só lutar. É ser atleta de alto rendimento, é entender a importância de ser atleta, ter postura”, completa Mateus.
Todos receberam férias neste mês. Keno Marley foi para a Suíça esquiar. “É um trabalho para mostrar que o boxe não é esporte feito por pessoas que não sabem se expressar. Podemos mostrar o que pensamos, dar boas entrevistas e queremos provar isso para o mundo”, afirma o atleta.
Ele terminou neste ano o curso de Educação Física. Orgulha-se em dizer ter recebido nota 10 em seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) sobre maneiras que a educação física pode combater o sedentarismo.
“Dentro da seleção, a gente faz trabalho sobre a importância do respeito, da simpatia, de estar bem com todo mundo e não atribuir derrotas a motivos alheios (ao boxe). A gente tem obtido resultados assim. Em qualquer lugar que vamos, a equipe brasileira é vista como a mais simpática, a mais amiga”, lembra o presidente da CBB (Confederação Brasileira de Boxe), Marcos Cândido de Brito.
A ideia é manter os resultados e trabalho cultural em 2022, nas competições que estão no horizonte. Há os Jogos Sul-Americanos, em que a meta é ser campeão por equipe. No campeonato continental, torneio de nível maior e que reúne atletas de toda a América, o foco está nas medalhas individuais.
É preciso também achar o substituto para Hebert Conceição, que decidiu se tornar profissional e assinou contrato com a Probellum Global Media, empresa de agenciamento. Cândido de Brito considerou a decisão precipitada. Para Mateus, faz parte. Ele vê isso como um processo natural, principalmente no boxe masculino, em que as premiações em dinheiro são maiores.
Com o boxe confirmado em Paris-2024, a seleção pode fazer um trabalho olímpico de longo prazo. Para Los Angeles-2028, a modalidade ainda não é dada como certa.
“A decisão (de confirmar o esporte em 2024) trouxe alívio, sem dúvida. É uma expectativa agoniante, muito embora a gente sempre tenha tido fé de que o boxe, pela sua tradição, fosse mantido”, afirma o presidente da CBB.
Para satisfazer o COI (Comitê Olímpico Internacional), o boxe terá critérios de definição de lutas mais objetivos. Isso pode evitar decisões controversas como a que eliminou Keno Marley em Tóquio.
“Este número pode aumentar durante o ciclo, mas vamos ganhar duas medalhas em Paris. Entre Bia (Ferreira), Abner (Teixeira), Keno e Wanderson (de Oliveira) vamos trazer duas medalhas”, profetiza Mateus Alves.