
Por Guilherme Botacini, da Folhapress
SÃO PAULO – No dia 31 de dezembro de 1851, as missas celebradas por toda a província de Pernambuco foram cercadas por grupos populares armados. O motivo: impedir que, ao final, fosse lido o decreto 798 de junho daquele ano, ritual que colocaria em prática o registro de nascimentos e óbitos na região.
Essa pressão tomava corpo desde o dia 19 daquele mês, quando no município de Pau d’Alho, entre a Zona da Mata e o Agreste da província, habitantes livres e pobres rasgaram cópias dos decretos afixados no povoado e ameaçaram autoridades.
A objeção se faz clara em um documento ao delegado, de janeiro de 1852, que restou dessa revolta pouco conhecida, sem líderes, de pouca duração e vitoriosa, chamada de Guerra dos Marimbondos.
“Tendo nós, pretos e pardos pobres, notícia do papel da escravidão que hoje era o competente dia de se ler, desejamos saber de Vossa Senhoria, como autoridade superior encarregada, se é ou não verdade”, lê-se no documento.
A revolta se expandiu para comarcas do entorno e para outras províncias do Nordeste em janeiro, teve invasões de engenhos e ocupações de vilas e terminou com a suspensão dos decretos para regulamentar o registro civil e a execução do primeiro censo nacional do Brasil, feito só 20 anos depois.
Nesta segunda-feira (1º), os agentes do IBGE voltam às ruas e começam a visitar 75 milhões de domicílios espalhados pelo Brasil para o Censo 2022.
No século 19, o “papel da escravidão” foi o termo usado para se referir ao decreto do registro civil, em razão de boatos de que sua função seria reescravizar pretos e pardos livres e pobres, em sua maioria agricultores, segundo o pesquisador Guillermo Palacios, em artigo publicado sobre a revolta.
“As áreas onde a sublevação foi mais radical e virulenta eram todas pontos focais de regiões produtoras de algodão -plantado frequentemente por trabalhadores livres em terras marginais de engenhos açucareiros- violentamente afetadas pelos últimos anos de um longo ciclo de depressão, decorrente da queda progressiva dos preços do produto no mercado mundial”, escreve Palacios.
Em 1850, a conjunção entre a Lei de Terras, “que vedava as possibilidades de acesso à terra por outras vias que não a herança e a compra”, segundo o pesquisador, o fim do tráfico de escravizados com a Lei Eusébio de Queiroz e a conjuntura econômica formaram o caldeirão que transbordou.
“A escravidão no país, principalmente ao longo do século 19, estava longe de constituir condição estática: ao contrário, inseria-se numa teia de negociações altamente marcada por idas e vindas, em que alforrias, ações de liberdade e reescravizações eram relativamente comuns”, aponta a pesquisadora Renata Saavedra em sua dissertação de mestrado sobre o tema.
Além disso, os revoltosos reclamavam da determinação de que batismos e enterros só poderiam ser realizados se apresentados registros de nascimento e óbito, algo que, na prática, deixou nos primeiros dias de funcionamento do decreto recém-nascidos sem batismo e corpos insepultos em um país essencialmente católico -99,7% da população, segundo dados do censo de 1872.
Também era alvo da revolta o recrutamento de homens livres pobres à Guarda Nacional, “um processo sabidamente de grande violência, não muito diferente da captura e condução de escravizados fugidos para as cadeias públicas”, segundo Palacios.
Não à toa, a repressão ao levante teve dificuldades em parte porque muitos membros da Guarda Nacional se recusaram a combater os revoltosos, juntando-se a eles.
Em seu texto, Saavedra ressalta que, para além dos boatos sobre reescravização e das tentativas das elites políticas de subestimar o movimento como irracional, estava a resistência à imposição de uma cidadania “de cima para baixo” que desconhecia a realidade da “gente baixa”, como alguns documentos se referiam à população armada.
A despeito disso e da vitória do levante, a versão oficializada em relatórios, discursos e textos na imprensa dava conta de que esse “povo miúdo” -mais um termo usado para descrever os sublevados- havia sido cooptado e manipulado por lideranças liberais derrotadas na recente Revolução Praieira, terminada em 1849.
Para Palacios, fica claro “o espanto e a descrença dos responsáveis pela administração do Estado perante a possibilidade de uma insurreição popular -nem de senhores nem de escravizados- revestida de uma virulência que transpunha os limites do comportamento social e políticos dos segmentos subalternos da sociedade escravista”.