A celebração que a comunidade quilombola do Barranco de São Benedito fez no domingo, 20, Dia da Consciência Negra, na Comunidade do Barranco, na Praça 14, revela que está viva, forte e segue firme a resistência negra no Amazonas. A vida da comunidade também provoca um olhar sobre a desconexão entre o passado e o presente no Amazonas.
O Estado esteve na vanguarda do movimento de luta contra a escravidão e o preconceito racial. Proibiu a escravização de pessoas quatro anos antes da Lei Áurea. Antes disso, em 1873, criou a Sociedade Emancipadora Amazonense para arrecadar fundos com objetivo de libertar as pessoas escravizadas. Este Amazonas hoje está de costas para as lutas de resistência que os negros e negras descendentes de pessoas escravizadas travam para manter sua história, seus costumes e culturas.
A celebração do Quilombo da Praça 14 foi uma festa bonita realizada no sábado e domingo na rua Japurá. Houve rodas de conversas e apresentações artísticas abertas ao público que expuseram os detalhes e riquezas das manifestações culturais que mantiveram a comunidade linkada com sua origem há mais de cem anos da migração de negros vindos do Maranhão.
Mais rico ainda é entrar em contato com o orgulho e a resistência de ser negro e negra no Amazonas por meio das histórias contadas pelos griôs, que são os sábios e sábias que detêm e repassam oralmente os saberes e fazeres da tradição das comunidades quilombolas. O presente do quilombo faz vibrar a emoção ao se imaginar o passado daquela comunidade e seus antepassados. O exemplo de uma cultura que valoriza sua história e os mais idosos mostra o quanto há para se aprender com a comunidade quilombola urbana de Manaus.
Uma das fundadoras do quilombo foi a negra Maria Severa, que veio do Maranhão alforriada com três filhos. Ela formou a comunidade com outras famílias de negros vindos do mesmo Estado. Os griôs contam que Severa trouxe as correntes com as quais era aprisionada na senzala e a imagem de São Benedito que é preservada até hoje no Barranco. Muitas pessoas do quilombo trabalharam na construção de prédios que hoje são patrimônio histórico do Estado como o Teatro Amazonas e o Reservatório do Mocó.
Todo esse conhecimento histórico e riqueza de saberes são negados à maioria dos amazonenses que tem acesso a uma história mal contada excluindo a participação dos negros e negras no Estado. Muita gente nem sabe que existe um quilombo dentro de Manaus.
História melhor é a contada pela professora da Ufam e pesquisadora Patrícia de Melo Sampaio, autora do livro ‘O Fim do Silêncio: a presença negra na Amazônia’ (2012). Em julho de 2015, ao final da apresentação de painel no Encontro de Mulheres Afroameríndias, emocionada, citou nominalmente negras e negros anônimos que ajudaram a construir a cidade de Manaus e foram dizimados do registro histórico.
Capitães do mato
Dois anos após a certificação da Fundação Palmares, por recomendação da Procuradoria da República, o quilombo urbano continua pressionado pela área comercial, pelas portas fechadas de acesso ao recursos e políticas públicas que propiciem pontos de cultura ou uma escola quilombola para as crianças da comunidade.
Uma medida que virou bandeira de luta dos movimentos negro e de artistas locais é a lei de incentivo à cultura. Nem município e nem Estado têm legislação que permitam conexão com as leis e políticas públicas do governo federal. Uma lei seria o mínimo.
Seria importante que a Prefeitura de Manaus, o Governo do Amazonas, deputados, senadores e vereadores, guiados por espírito público, se empenhassem ou ao menos não fortalecessem tantos entraves, que não ajudam a mudar a trajetória da negação para criação de outro caminho para o segundo quilombo urbano reconhecido no País. E que partir deste quilombo, e dos outros quatro quilombos reconhecidos no Amazonas, novas perspectivas de justiça histórica pudessem ser construídas, contadas, recontadas, conhecidas e vividas por mais pessoas.
Os atos dos homens e mulheres que ocupam espaços de poder no Amazonas não guardam semelhança com os dos que atuaram na vanguarda abolicionista no Estado. Mais parecem capitães do mato do século 21 que, estando em pontos estratégicos da administração pública, criam entraves e não ajudam nos mecanismos que podem construir uma sociedade mais plural, justa com o seu passado e reajustada com seu futuro.
E pensar que há negros e negras nestes espaços que, mesmo sendo a minoria, ignoram a importância da consciência racial.
Por isso mesmo, é grande a dívida de Manaus com os griôs da Comunidade do Barranco. São eles e elas que, à revelia de todo o movimento preconceituoso, sistemático e contrário ao reconhecimento da história dos negros e negras no Amazonas, garantiram até hoje as possibilidade de construção de um futuro menos desprovido de verdades e de ocultação da história.
Como homenagem, reproduzo o ato da professora Patrícia Sampaio e cito aqui parte das sábias da cultura negra no Estado que dominam as informações da origem, dos saberes e sabores do quilombo de São Benedito: Dona Guguta, Tia Enemésia, Tia Dorinha, Tia Nazaré, Tia Hildamira, seo Salgado, Seo Delfino, Raimundo Elísio, seo Augusto, Maria Severa …
Dona Guguta
Tia Deca, Deusdete Fonseca
Dona Nazaré Vieira