
O artigos 37 e 38 da Exortação Apostólica Pós-Sinodal ‘Querida Amazônia’ assinada pelo Papa Francisco apresenta um debate oportuno e necessário na Amazônia caracterizada pela diversidade cultural.
Na primeira parte do artigo 37, o Papa Francisco afirma que “é a partir das nossas raízes que nos sentamos à mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas. Deste modo a diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira, transforma-se numa ponte. A identidade e o diálogo não são inimigos. A própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece”.
Compreender a diferença como uma ponte é uma atitude que rompe com toda e qualquer forma de colonialismo. Num contexto amazônica marcado pelas migrações internas e internacionais, essa ponte se torna cada vez mais urgente e necessária.
Quando a diferença “transforma-se numa ponte” abrem-se novos canais de entendimento e de enriquecimento mútuo. Nunca foi fácil lidar com as diferenças. Entretanto, no atual sistema capitalista, há uma forte tendência à homogeneização das diferenças. Com isso, perde-se a oportunidade de conhecer e ampliar os horizontes.
Para manter a diferença é preciso reconhecer o valor de cada cultura, de cada grupo humano. “É a partir das nossas raízes que nos sentamos à mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas”, afirma o Papa Francisco. No encontro com o diferente, as identidades se fortalecem e se enriquecem, não para a competição, mas, para a integração das diferenças.
No artigo 38 da ‘Querida Amazônia’, o Papa Francisco afirma que “na Amazónia, mesmo entre os distintos povos nativos, é possível desenvolver relações interculturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre os outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes, de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança.
Nesta perspectiva, para além dos diversos grupos culturais que vivem na Amazônia, a circulação de migrantes nacionais e internacionais neste imenso território também representa oportunidade de encontros interculturais. Os migrantes fazem circular conhecimentos, saberes ancestrais, ciência, técnicas e tecnologias. Circulam trocas interculturais, culinárias regionais, sementes, plantas e flores. Os migrantes tornam “possível desenvolver relações interculturais onde a diversidade não significa ameaça”, mas, oportunidades. A sociedade perde quando interpreta a migração como um problema e não como uma oportunidade.
Nos anos de 2010 e 2011, durante a realização de um mestrado no Programa de Pós-Graduação em Gênero, Identidade e Cidadania, da Universidade de Huelva, na Espanha, tive a oportunidade de participar, na condição de estágio docente, do Consórcio de Entidades para a Ação Integral com Migrantes – CEPAIM.
Os estudos acadêmicos me fizeram participar de um programa específico desenvolvido pelo CEPAIM, no Departamento de Interculturalidade e Desenvolvimento Comunitário. Neste departamento havia um programa voltado para a Educação Intercultural. Acompanhei este programa durante meu estágio docente na cidade de Cartaya, fronteira com Portugal.
Apesar de ser um município com economia voltada para o turismo por conta das praias nos seus arredores, Cartaya é um município cuja economia central é o agronegócio que atrai significativa mão de obra migrante. A grande maioria dos migrantes é atraída pelo ‘contrato de origem’ que é uma modalidade de contratação temporária de trabalhadores nos países de origem.
Este tipo de contrato temporário representa grandes lucros para os empregadores. Aliás, exploração da mão de obra dos migrantes é um grande lucro no sistema capitalista. Diversas nacionalidades de migrantes são deslocadas para Cartaya para o trabalho temporário.
Muitos jovens e as crianças migrantes são acompanhados pelo Departamento de Interculturalidade e Desenvolvimento Comunitário do CEPAIM. Este departamento desenvolve atividades pontuais como as feiras de trocas interculturais nas quais circulam culinárias, artesanatos, músicas, danças das diversas nacionalidades e grupos culturais. Outras atividades são permanentes como o programa de Educação Intercultural, do qual participei.
O Programa de Educação Intercultural desenvolve atividades nas diversas escolas que acolhem os jovens e as crianças migrantes. Aos poucos, as escolas do município foram se identificando com a proposta intercultural e passaram a adotar a Interculturalidade em seu planejamento político pedagógico. Viram nas migrações uma oportunidade de adequação do currículo quando perceberam que a grande maioria dos alunos era constituída de migrantes que falavam outras línguas e portavam outras culturas.
As escolas, tanto de ensino fundamental quanto do Ensino Médio, passaram a funcionar de acordo com as demandas migratórias, e os alunos locais tiveram muitos ganhos a partir das trocas culturais. Naquelas escolas, se aprendia e se ensinava em pelo menos cinco idiomas distintos.
Essa experiência ora compartilhada comprova que a interculturalidade representa ganhos em diversos sentidos. Ganha quem chega trazendo esperança de dias melhores. Ganha quem recebe e compartilha a cultura local e se enriquece com as demais numa “grande mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas”. Interligando esta experiência de Cartaya com o contexto amazônico, conclui-se que as migrações e a diversidade cultural da Pan-Amazônia representam uma grande riqueza cultural mostrada ao mundo através da ‘Querida Amazônia’ que nos desafia a acolher e integrar as diversas culturas na nossa grande “casa comum”.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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